Faixa de Gaza. Israel atira a matar contra protesto

As balas israelitas provocaram ontem o dia mais sangrento em quatro anos de violência na Faixa de Gaza. “É um dia glorioso”, disse Netanyahu na inauguração da embaixada dos EUA em Jerusalém.

Ao fim do dia de ontem, primeiro sob o sol morno da primavera e, em seguida, debaixo do fumo, fogo e balas israelitas, 52 palestinianos foram abatidos na Faixa de Gaza protestando, acima de tudo pacificamente, contra a ocupação de territórios que consideram seus e que há 70 anos, nos dias quase coincidentes da fundação do Estado de Israel e do início das grandes expulsões, verdadeiramente o eram. Foram abatidos pelos soldados que continuamente observam a partir da vedação que separa a Faixa de Gaza de Israel e que, no fim de semana, foram reforçados para responder aos protestos esperados por causa da abertura da embaixada dos EUA em Jerusalém, em décadas o sinal mais nítido de que as aspirações a uma Jerusalém pacificamente repartida entre judeus e palestinianos é, para já e por muito tempo, uma miragem. Duas mil e quatrocentas pessoas ficaram feridas, muitas com balas israelitas nas pernas e abdómen. Entre os feridos e mortos estão crianças e mulheres. Um jornalista da Al-Jazira foi também atingido.

As imagens captadas ontem nos baldios palestinianos representavam a máxima distância possível das fotografias tiradas na embaixada inaugurada em Jerusalém. De um lado, as nuvens de fumo cinzento-escuro envolvendo corpos tombados ou em fuga; do outro, almoços e discursos sorridentes de americanos e israelitas bem vestidos.

“É um dia glorioso”, afirmou, extático, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. A algumas dezenas de quilómetros vivia-se essa segunda existência reservada aos quase dois milhões de palestinianos que há 70 anos vivem em condições mais próximas das de um campo de concentração do que a consciência israelita gostaria de admitir. O comando militar israelita admitiu ontem que não esteve sob fogo e que apenas um militar seu ficou “ligeiramente ferido” com os estilhaços de um explosivo. Assegurou também que nenhum palestiniano cruzou a vedação que os israelitas defendem. Mesmo assim, atiraram a matar.

O dia de ontem foi o mais mortífero em quatro anos de violência na Faixa de Gaza. Soma-se às sete últimas semanas de protestos, confrontos e retaliação: morreram já 96 pessoas desde o fim de março. As concentrações de ontem ascenderam às dezenas de milhares. Esperam–se hoje multidões semelhantes. Celebra-se o “Nakba”, a “catástrofe”, o primeiro dia das expulsões que em 1948 desalojaram centenas de milhares de palestinianos, muitos para a Faixa de Gaza, onde hoje 80% das pessoas são descendentes ou sobreviventes das deslocações de há 70 anos. Ontem, várias vagas de palestinianos tentaram aproximar-se das posições israelitas, ignorando os avisos dos panfletos largados dos ares durante o fim de semana. A primeira vaga era completamente formada por mulheres de negro. “Hoje é o grande dia no qual cruzaremos a vedação e diremos a Israel e ao mundo que não aceitaremos ser ocupados para sempre”, afirmava à tarde um manifestante que se identificou à Reuters como Ali. “Muitos tornaram-se hoje mártires, demasiados, mas o mundo ouvirá a nossa mensagem.” Fracassou. A vedação ficou por atravessar. Ali terá outra oportunidade hoje.

EUA e o governo israelita falaram ontem quase exclusivamente da abertura da embaixada americana (ver texto ao lado). Estavam num mundo paralelo ao da comunidade internacional, que quase unanimemente condenou a repressão israelita com uso de munições reais. Telavive lançou também ontem bombardeamentos contra instalações do Hamas. As IDF defendiam-se publicando, por exemplo, um vídeo onde três homens tentam montar uma bomba na vedação israelita – foram todos abatidos. Netanyahu, acabado de sair da cerimónia de inauguração, escreveu no Twitter que o Hamas deseja a destruição de Israel e a invasão do país, e que Israel tem de se defender: “Continuaremos a agir com determinação para proteger a nossa soberania e cidadãos.”

ONU, França, Reino Unido e um grande grupo de organizações humanitárias internacionais assistiram aos acontecimentos sob outra perspetiva. Alertavam em consenso contra o uso indiscriminado e desproporcional de força contra manifestantes desarmados, os alertas mais comuns contra os militares israelitas. “A morte chocante de dezenas e os ferimentos de centenas, vítimas de disparos israelitas com balas reais em Gaza, deve parar agora”, escreveu ontem o comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad al-Hussein. “O direito à vida deve ser respeitado. Os responsáveis por este tipo de violações obscenas dos direitos humanos devem ser responsabilizados. A comunidade internacional deve garantir justiça às vítimas.”