Câncio e o padrão Sócrates

Escândalo não foi o que disse Fernanda Câncio – mas o silêncio de muitos jornalistas

Fernanda Câncio causou escândalo esta semana por ter escrito uma coluna de opinião em que atacava o ex-namorado e companheiro, José Sócrates. 

Não percebo o escândalo. Basta viver um bocado para saber que a opinião de familiares, ex-maridos ou ex-mulheres, é a mais tendenciosa de todas. Embora haja exceções (contadas), vão perguntar a alguém o que acha de um ‘ex’ e ouvirão o que Maomé não diz do toucinho. Se sabemos que é assim em geral, não vale a pena fingir que há novidade num facto da vida que é tão velho que já vem no Antigo Testamento. 

Convinha discutir, isso sim, uma outra questão: qual o papel dos media, jornais e televisões, nesta questão Sócrates? E isto de 2005 a 2018 – ou seja, durante 13 anos, uma eternidade.

Dando de barato a histeria coletiva do primeiro mandato de Sócrates, na sequência da primeira maioria absoluta do PS, e a maluqueira do segundo mandato, o primeiro-ministro continuava idolatrado nas redações. Ora, se Fernanda Câncio era namorada – e, por isso, embotada por definição -, não consta que os jornalistas da nação tivessem motivos para tanta cegueira. 

Pelo menos, seria de presumir que, quando Sócrates deixasse o cargo, a idolatria, a cegueira e a adulação que o poder sempre traz consigo desaparecessem. Mas não foi isso que sucedeu. 

É certo que temos de distinguir jornais e TVs. Os jornais mostraram-se espaços muito mais livres. Houve aqueles que, como o SOL e o i, se declararam abertamente contra Sócrates; e houve outros, como o DN e o JN, que abertamente eram a favor. Ou seja, Sócrates era assunto e estes jornais tomavam posição clara e inequívoca em relação à personagem.

Mas as televisões adotaram uma posição completamente diferente. Com exceção da TVI no tempo de Moura Guedes, fizeram de Sócrates um tabu. Administrações e diretores de informação preferiram a política do silêncio. Depois da detenção de Sócrates, em novembro de 2015, a língua oficial das TVs passou a ser a repetição exaustiva do linguajar de pau «à política o que é da política, à justiça o que é da justiça».

Os diretores de informação, que são os responsáveis pelos convites a quem vai falar à TV – e sobretudo aos apetecidos programas de comentário politico -, começaram a ter o cuidado censório de escolher só pessoas que repetissem com ar crédulo o referido chavão. 

Ter posição pública e assumida contra Sócrates passou a ser critério para não ser convidado a ir falar às TVs. A pessoa podia pensar bem e falar melhor, mas se lhe fossem conhecidas posições ostensivamente contra o senhor engenheiro nenhum diretor de informação corria o risco de desfazer o tabu.

E não creio que isso vá mudar tão depressa. Querem motivo de escândalo? Têm-no aqui – e deixem lá a Câncio.

sofiarocha@sol.pt