A tortura na liderança do mundo livre

Todos os atentados terroristas em locais que conheço abriram feridas no meu coração. Mas não foi por isso que me tornei um adepto da tortura. Torturar é praticar o mal, e só pode ser defendido por quem seja ideologicamente faccioso, ou parcialmente loco, ou ambos. Exemplos não faltarão.

Sempre considerei os Estados Unidos da América como o país líder do mundo livre, frequentemente assumindo o encargo de mandar homens e mulheres para a morte, assumindo as dores de liderar operações militares para derrubar ditadores sanguinários, operações militares essas que depois são amplamente criticadas, por exemplo, por largos sectores da sociedade portuguesa, como se Saddam Hussein ou Muammar Khadaffi não impusessem o seu poder através do terror, quer a nível interno quer internacional. Saber quem são os nossos amigos, e quais os valores que defendemos, é o alvo de um consenso nacional de uma política externa sensata.

Por isso, devo exprimir o meu profundo desapontamento pela aprovação por uma comissão do Senado dos Estados Unidos de Gina Haspel para ser a nova diretora da CIA. Os pormenores conhecidos são escassos, mas parece que esta mulher terá participado, com entusiasmo, em sessões de tortura.

Assim, foi atravessada uma perigosa linha vermelha.

Quem, por exemplo, se bateu contra a sua nomeação, foi o moribundo candidato do partido republicano às eleições presidenciais de 2008 – que viria a perder para Barack Obama – o senador John Mcain. Mcain foi piloto da marinha durante a guerra do Vietname, e foi abatido numa sessão de bombardeamento sobre Hanoi. Quando os vietnamitas descobriram quem ele era –  McCain é filho e neto de almirantes – torturam-no. Não tenho adjetivos para descrever o que se passou. Basta escrever que McCain nunca mais foi capaz de abotoar os atacadores dos sapatos sozinho. O que não o impediu de, algumas décadas depois, promover a aproximação diplomática entre os Estados Unidos e o Vietname. Muitos – eu, possivelmente – não teriam sido capazes de o fazer.

Os Estados Unidos não tiveram necessidade de torturar os criminosos de guerra nazis nos julgamentos de Nuremburga, e em alguns casos de os condenar â morte. Os crimes eram demasiados evidentes. Aliás, como McCain descreveu, nem é certo que a tortura seja o meio mais eficaz de obter informações, porque quem está a ser torturado quer que o sofrimento pare o mais rapidamente possível e, por isso, recorre a meios imaginativos. McCain, inteligentemente, conseguiu encurtar o seu sofrimento indicando os nomes de jogadores de futebol como sendo de chefias militares.

Mas esse não é o ponto principal. Nós defendemos a liberdade, a democracia, e os direitos humanos. Para usar uma popular linguagem cinematográfica, nós somos o lado bom da força. Por isso, nós não torturamos. Na Europa, o que a CIA fez seria impensável.

Já estive em vários sítios que depois foram alvo de atentados terroristas, como o metro de Bruxelas, que eu usava todos os dias para ir para o trabalho. Ou o aeroporto de Bruxelas, Zaventam, onde embarquei para vários pontos do mundo. Ou a praça Djama el Fna, em Marraquexe, que é o centro daquela cidade tão típica, diferente e fascinante.

Todos os atentados terroristas em locais que conheço abriram feridas no meu coração. Mas não foi por isso que me tornei um adepto da tortura. Torturar é praticar o mal, e só pode ser defendido por quem seja ideologicamente faccioso, ou parcialmente loco, ou ambos. Exemplos não faltarão.