Fernando de Pádua. “É preciso cuidar dos sub-20 para chegar aos 120, que é o que eu quero”

A dias de fazer 91 anos, o cardiologista fala da infância, de Harvard – onde foi o primeiro português – e das sortes que o guiaram pela Medicina

Responde a mensagens escritas, tem conta no Facebook – ainda que sejam os netos a gerir – e de vez em quando ainda vai a pé de casa, perto das Amoreiras, para a fundação, junto à Gulbenkian, 18 minutos de exercício. A dias de completar 91 anos, Fernando de Pádua atribui a longa carreira às sortes repetidas que agarrou ao longo da vida. E continua a insistir no princípio da prevenção e na educação para a saúde, lição que trouxe de Harvard e que durante anos foi mal aceite por cá, lembra. Dia 30 de maio é apresentada a segunda edição (revista e atualizada) da biografia do “professor do coração”, que espera chegar aí aos 120, “alegre, ativo e saudável”. 

Nasceu em 1927, no Algarve. Era outro Portugal?

Nasci em plena crise. O meu pai era órfão e trabalhava numa fábrica de conservas em Faro, do padrinho dele. O padrinho morre e o meu pai fica sem emprego. Foi com um irmão para o Brasil procurar trabalho e a minha mãe agarrou em nós – em mim, no meu irmão mais velho e na minha irmã mais nova – e levou-nos para o pé da família dela, em Almodôvar. 

Portanto cresceu no Alentejo.

Sou algarvio de nascimento e alentejano de coração. Arranjaram-nos uma casinha pequenina e lá ficámos. É giro porque criámos há pouco tempo a delegação da fundação em Almodôvar, procuraram uma sede e alugaram uma casinha. Quando lá chego, era a minha casa dos cinco anos. Uma coincidência.

Ser médico era sonho que um miúdo que crescia no Alentejo podia ter?

Ainda estamos muito longe disso. O meu pai regressa um ano e meio depois e arranjou emprego no Tramagal [Ribatejo], na metalúrgica Duarte Ferreira, que produzia alfaias. Começo a ir à escola no Tramagal. Como o meu irmão era mais velho, a minha mãe em casa ensinava-o. Aprendi a ler ao lado deles aos quatro ou cinco anos, sozinho. Um dia dou comigo a ler no jornal “Lis-boa”. A certa altura o meu pai conseguiu transferência para Lisboa e vim para a escola primária e depois para o liceu. Primeiro era mau aluno, tinha pouco treino.

Havia essa diferença entre quem vinha da terra e quem era da cidade?

Fui para o Liceu Gil Vicente, ali junto à Graça. Era uma questão de concentração. Faltava as aulas para jogar futebol ou andávamos a apanhar caracóis.

Como era essa Lisboa dos anos 30?

Íamos a pé para todo o lado. Naquela altura começaram os carros elétricos. Lembro-me de pagar dois tostões e meio para apanhar o carro operário e chegar cedo à escola. Agora à minha porta nas Amoreiras estão a passar de novo os elétricos mas naquele tempo eram mais primários. Depois o meu pai arranjou uma casa mais perto do escritório e mudámos dos Sapadores para a Calçada do Marquês de Abrantes.

E mudou de escola?

Sim, deixo o Gil Vicente e vou para o Liceu Passos Manuel, que era muito mais organizado. Só rapazes. Depois veio a guerra e a Duarte Ferreira fechou. Aí começaram as dificuldades, começámos a ter uma vida muito coartada.

Tem memórias do racionamento?

Do racionamento e de colarmos papéis nas janelas para não haver brilho à noite, assim se os aviões alemães viessem não bombardeavam Lisboa.

Tinham esse medo?

Sim. Ia às férias d’O Século na colónia balnear no Estoril e lembro-me de ver barcos no mar e pensar que eram alemães que nos iam bombardear. Eram os pensamentos dos miúdos de dez anos. 

E lembra-se de os seus pais terem dificuldade em arranjar comida? Havia carne, peixe?

Sim. Não passávamos fome, mas é como se diz: metade de uma sardinha para cada um. Eu tinha um tio-avô em Castro Verde que era proprietário – eram as pessoas com mais poder económico que tínhamos perto de nós. Naqueles meses do verão que íamos para lá não havia despesa em casa e estávamos na engorda. Lembro-me deste tio me levar a ver uma das suas vinhas e um dia deu-me um cacho de uvas só para mim. Nunca tinha comido um cacho de uvas sozinho: havia um cacho e dividia-se por todos. 

Como era a vida no Passos Manuel?

Era uma escola mais de elite. Tinha dois grandes amigos, o Manuel Metelo, que viria a ser advogado, e o Francisco José Aboim Borges, psiquiatra, que morreu há pouco tempo. Ter saído do liceu Gil Vicente para o Passos Manuel foi a primeira sorte que agarrei. Napoleão dizia que sorte repetida é competência e comigo foi assim, tive sorte múltiplas vezes ao longo da vida e depois ou apanhamos a sorte ou não. Tive a sorte de sair do Gil Vicente, onde era mau aluno, e ir para o Passos Manuel, onde melhorei.

Aplicou-se mais?

Apliquei-me um bocadinho mais e era o ambiente. Uma vez, numa prova de português, uma redação, o professor disse que estava entre os melhores, era o segundo classificado. Percebi que afinal podia ser bom aluno.

Onde iam os adolescentes nessa Lisboa dos anos 30/40? 

Não íamos a lado nenhum! Estávamos em casa, com a família. Raramente se ia ao cinema ou ao teatro. Fui ao cinema pela primeira vez no Tramagal. Passaram primeiro o filme “A Severa” e o segundo filme era sobre a vida de Santo António. A meio do filme a malta começa a papaguear para repetirem a Severa, sempre tinha os fados.

Santo António de Pádua, seu familiar.

(Risos) Consta que tenho este apelido por qualquer ligação de uma alemã e de um italiano de Pádua. Não sabemos bem a história.

Na adolescência já usava laço?

Não, nem gravata, quanto mais laço. O laço veio da América. Terminei o liceu Passos Manuel como melhor aluno e isso permitiu-me ir para a universidade com uma bolsa.

Na altura já sabia que queria ser médico?

Na família dizia-se que, sendo bom aluno, ou era engenheiro ou doutor. Nesse tempo fazia-se a admissão em cada universidade e acho que é o melhor que pode haver: isto de um reitor não saber quem são os alunos que vai receber não faz sentido. Hoje se calhar temos muitos médicos que queriam ter ido para engenheiros mas foram para médicos porque se ganhava mais – hoje não será bem assim mas durante muitos anos foi. Fui em junho à Faculdade de Medicina e marquei para ir ao Técnico em outubro.

Não sabia o que queria ser?

No fundo não. O único desejo que tive foi de ser professor, talvez por ter tido bons professores. O que aconteceu foi que entrei logo em Medicina. A admissão para o Técnico era muito difícil e tinha matérias que não eram dadas no liceu. Um amigo que estava no Técnico ofereceu-se para me ensinar aqueles campos da matemática que eram precisos mas foi chamado para a tropa e eu fiquei sem explicador. Pensei porque é que me vou estar a chatear? Deixa-me ir de férias para Almodôvar. E foi assim que em outubro entrei em Medicina.

Foi a segunda sorte?

Sim, não fui eu que saí da engenharia, foi a engenharia que me deixou. Mas a sorte foi ter notas para ter bolsa de estudo, se não não havia dinheiro. A sorte aliás começou mais cedo: o meu irmão foi para a escola industrial e eu só fui para o Passos Manuel porque não tinha idade. Ele foi trabalhar para a CUF e eu pude continuar a estudar.

Era muito caro estudar na Faculdade de Medicina?

Para quem não tinha dinheiro era caro. Quem me ajudou foi a minha tia Maria Archer, que seria perseguida pela PIDE e na altura já era uma escritora conhecida. Escreveu um artigo “Eu vi um pelicano”, a falar de um rapaz bom aluno sem dinheiro para ir para a faculdade. Marcello Caetano, que a conhecia, perguntou-lhe se era um rapaz inventado ou alguém que ela conhecia e quando soube da história propôs-se a arranjar-me uma bolsa. Mas como o meu pai era sindicalizado e, o sindicato também dava bolsas, consegui apoio com as minhas notas. Quando veio o 25 de Abril fiquei contente: se tivesse estudado com uma bolsa do regime ainda era saneado…

Sentia-se condicionado pelo regime?

Confesso que não. No liceu não o senti. Entrei para a Mocidade Portuguesa como quase todos os nós: lembro-me dos acampamentos no Guincho, das barracas, daquelas marchas. Mais tarde, na faculdade, uma vez entrou lá a PIDE e aquilo fez-me confusão. Havia os colegas que eram os esquerdistas. Eu tinha o meu grupo de rapazes e raparigas e dávamo-nos todos: alguns ainda apanharam e tiveram de fugir. Nesse dia fui ao centro universitário da Mocidade entregar o meu emblema e dizer que não queria fazer parte daquilo. Até aí não tinha sentido nada. Aquelas histórias da polícia, do Tarrafal, soube de tudo mais tarde. Costumava frequentar a Igreja do Rato, que era muito avant-garde, e uma noite houve lá uma reunião e várias pessoas foram presas: o José Manuel Pinto Correia, o Urbano Tavares Rodrigues. Viram-se e desejaram-se. Por sorte não estive lá, se não tinham-me engavetado também em qualquer sítio.

Houve algum momento em que sentiu mais claramente a vocação da Medicina?

Foi com o tempo. Agarrei-me àquilo de tal maneira… Há pouco tempo vi na estante os meus livros de Anatomia, que no meu tempo eram cinco quilos de livros, e abri-os: até as notas de rodapé tinha sublinhado. Lembro-me de estar na casa dos meus pais, de ter o meu quarto e de a minha mãe ter amuado comigo porque pus um letreiro à porta a dizer “silêncio, aqui está um estudante”. Ficou ofendida. Eu precisava de passar a Anatomia, se não perdia a bolsa. Comprei uma lâmpada com pouca luz para poder no verão fechar as janelas e ficar a estudar às escuras sem morrer de calor.

Portanto não andava a namorar por Lisboa, na galderice.

Sim, também na altura não havia nada disso, não havia boîtes. Tive muito poucas distrações e muito trabalho.

Conheceu a sua mulher na faculdade?

Na altura havia poucas mulheres no curso. Eu tinha um namoro cá fora mas aí no quarto ano acabei com a outra, namorávamos há uns três anos. Foi um desgosto tão grande que foi o único 16 que tive no curso. Entretanto começámos a estudar juntos e na viagem do curso a Paris comecei a namorar com a minha futura mulher. A Maria Manuela morreu-me há dois anos. Foi a melhor aluna do curso.

Estiveram casados quantos anos, 70?

Quase. Casámos em 52, foram 65 anos.

Incrível.

Toda a gente dizia isso. Sempre a gostar um do outro. Tivemos três filhos. Os últimos anos tiveram demasiado sofrimento.

Ela também exerceu?

Sim, mas não teve tanta sorte. No fim do curso ganhei um prémio do Rotary Club de Lisboa. Nem sabia o que era. Naquele ano tinham uma bolsa para o melhor aluno da Faculdade de Medicina. Davam-me três contos de reis e durante seis meses podia ir lá fazer as refeições no clube. Se naquele ano a bolsa fosse para Direito, não tinha podido continuar a estudar, tinha ido para João Semana. Assim, depois de começar a fazer clínica em Alcáçovas, pude entrar para interno no Hospital de Santa Marta e ia almoça com professores célebres como Francisco Gentil, do Instituto de Oncologia. Em 1952, surge a hipótese de concorrer a uma bolsa internacional dos Rotários e assim consegui ir para Harvard.

Harvard era outro mundo?

Ainda hoje é outro mundo. Queria muito especializar-me em Cardiologia, ter um instituto de Cardiologia como havia no México. Logo no terceiro ano da faculdade, o professor Eduardo Coelho, pioneiro do cateterismo cardíaco em Portugal, tinha-me conquistado para trabalhar com ele mas eu tinha-lhe pedido para decidir no fim do curso. Nesta altura já colaborava com ele e escolho Harvard porque era a melhor universidade e tinha um curso de aperfeiçoamento. Dessa vez, em vez de três contos, foram 100 contos de bolsa! Só a inscrição em Harvard eram 30 contos. Teria sido impossível sem a bolsa, nem pensaria nisso.

Havia outros portugueses em Harvard?

Fui o primeiro aluno. Há um grupo dos portugueses que entraram em Harvard aí 20 anos mais tarde.

Falava inglês?

Sim, mas pouco. Contratei uma professora para falar com ela. Na altura fazia clínica no hospital e disse-lhe que não tinha tempo para aulas e trabalhos de casa, mas combinámos duas vezes por semana para conversar em inglês. Era daquelas inglesas à moda antiga e tinha um cãozinho e eu contava-lhe as experiências que fazia anestesiando um cão, procurando o coração.

E ela ficava nervosa?

Sim, “coitadinho”. De facto o cão morria no fim. Lá sigo então para a América. O curso com 50 professores tinha a duração de um ano.

Um deles Paul White, uma das suas referências.

Sim, o médico de Einsenhower, que teve vários enfartes mas lá ia recuperando sempre com as indicações de Paul White, a jogar golfe. Foi considerado o melhor cardiologista do século XX. A sorte que tive em aprender com este homem! Ele cativou-me porque nos dizia que a saúde era por demais importante para estar só na mão dos médicos. Cada qual tem de aprender a tomar conta da sua.

Foi a primeira vez que ouviu falar de prevenção?

Sim e foi uma dose… Ideias como a de que doença ou morte antes dos 80 é culpa do homem. Não é Deus, não é a natureza, nós é que nos matamos.

Cá nunca tinha ouvido dizer isso?

Nunca. Eu vim para cá dizer isto e durante 20 anos tive de deixar de dizer. Ideias como a de que a faculdade não se podia fechar, que a população queria saber, que era preciso falar de medicina na televisão… Cheguei cá e apanhei de todos os lados. “Veio da América e julga que é mais importante”. Diziam que queria protagonismo, o retrato no jornal. Ensinar os doentes a medir a tensão arterial e não ser um médico a fazê-lo? Hoje toda toda a gente sabe que é isso que temos de fazer.

E era em Harvard que se usava laço?

Os médicos usavam todos, os estudantes não. Ainda hoje é assim na Nova Inglaterra.

O quotidiano lá era muito diferente? 

Passei a ter um frigorifico a gás, cá ainda se usavam as salgadeiras. E depois trouxe-o: valeu a pena metê-lo num barco e pagar. Os americanos só tarde descobriram porque é que em 1925 começaram a ter menos acidentes vasculares cerebrais e nós só nos anos 50: foi dos frigoríficos. Começaram quase 30 anos antes de nós a reduzir o consumo de sal.

Em Harvard estranhavam ver um português?

Queriam saber da escravatura. Como eu tinha a bolsa do Rotary, tinha duas obrigações: quando acabasse, tinha de regressar e tinha de ir lá aos clubes falar de Portugal. Chegava e obrigavam-me a beber um cálice de vinho do Porto feito na Califórnia. Eu dizia que não bebia e eles diziam “just to be social”.

O vinho do Porto era a única referência de Portugal?

Era isso e a escravatura, de ainda termos colónias. Eu dizia que éramos diferentes dos ingleses, inventámos o mulato. Mas claro que abusavam, como se abusava no Alentejo.

Nunca bebeu álcool?

Foi assim que me ensinaram os meus pais. Havia muitas bebedeiras em Portugal, hoje já não se veem bêbedos na rua. Salazar tinha tiradas inteligentes: uma vez disse que beber vinho era dar de trabalho a um milhão de portugueses. O que é que os taberneiros fizeram? Deitaram sal às pevides de abóbora, o presunto ainda mais salgado, para fazer bem ao país.

Também nunca fumou?

Fumei até aos 35 anos, comecei na faculdade. Lembro-me de, com quatro anos, fumar um cigarro de palha num quarto lá em casa e incendiar um vestido da minha mãe. Era para parecer um homem. Só no fim da faculdade, já depois de voltar da América, é que começámos a saber que o tabaco fazia mal. Um colega inglês resolveu estudar de que morriam os médicos e os que tinham cancro do pulmão eram todos fumadores.

Fumavam nas aulas e no hospital?

Fumava-se na enfermaria do hospital de Santa Maria, a ver os doentes.

E os doentes?

O médico é que diziam. As escadas do meu hospital estavam sempre cheias de beatas. Tive de deixar porque era um exemplo tramado. Nessa altura começou a saber-se que não era só o cancro do pulmão, eram doenças do coração. Acho que não estava viciado, não tive dificuldade em parar. Hoje sabe-se que está um pouco no nosso ADN ficar viciado ou não. 

Em Harvard os médicos também fumavam?

Era igual. Uma vez perguntei a uma americana da Organização Mundial de Saúde porque é que os médicos não paravam de fumar. Ela disse-me que já tinham estudado o problema: tinham medo de não ser capazes de parar, não queriam dar esse exemplo. Para não falhar, continuavam a fumar, alguns escondidos. Um dos melhores médicos do meu grupo, o Evaristo Ferreira, morreu ainda a fumar nos cuidados intensivos. Eu não sabia, ao pé de mim ele não pegava nos cigarros, até porque tínhamos todos a ideia da prevenção, mas não conseguia. 

Esteve quantos anos no Hospital de Santa Maria?

Da inauguração até 1997, quando me jubilei da Faculdade de Medicina. Cheguei em 1953 de Harvard e na noite seguinte a chegar fui com o Eduardo Coelho ver as instalações. Conheci o Santa Maria quando ainda eram só paredes. Quando fui chefe de serviço recebi camas vazias e paredes pintadas. Com 39 anos estava catedrático. Era o mais novo.

Com que idade se chegava a catedrático?

40, 50. O Eduardo Coelho só com 60 teve vaga. Ele que me ajudou tanto…. senti que tinha pena de não ter tido a mesma oportunidade.

Além do laço, trouxe outros hábitos de Paul White para Lisboa?

Ele andava de bicicleta para todo o lado. Eu ainda tentei mas caí na rua. Um dos meus “súbditos” também caiu e partiu o braço nos carris do elétrico. Nunca mais aconselhei ninguém a andar de bicicleta em Lisboa.

E corria?

Nada de especial, tentei o ténis mas comecei a ter dores no cotovelo e deixei. Era ir à praia e andar a pé. Ainda agora ando a pé e vou daqui [da sede da Fundação Professor Fernando de Pádua, junto à Gulbenkian] para as Amoreiras, são 15, 18 minutos. Agora ando chateado porque foi criada uma carreira que para à minha porta. Às vezes saio em Campolide para ir a pé. E lá no prédio dei ordem à porteira para não me abrir o elevador que eu quero subir as escadas.

Para ter saúde é preciso disciplina?

Sem dúvida. No Santa Maria, de 1953 até ao dia em que saí, em 1997, trabalhei sempre no nono andar e subia sempre a pé as escadas, de dois em dois degraus.

Diziam que era maluco?

Diziam “vou ali num instante, já lá vou ter”. Poucos me acompanhavam. Um dia no “Expresso” saiu uma notícia a dizer que tinham ido visitar Santa Maria e ainda se lembravam por lá do professor Pádua, que era claustrofóbico e não se metia no elevador. Mandei um desmentido para o José António Saraiva: eu não era claustrofóbico, queria dar o exemplo de que era bom fazer exercício. 

O SNS vai fazer 40 anos no próximo ano. Foi um passo decisivo?

Sem dúvida. Quando vemos a América ter um tufão e morrerem pessoas só porque não têm medico… é das melhores coisas que temos, só que depois arranjam sempre maneira de andar em guerra, em ideologias. Toda a minha vida trabalhei dentro e fora do hospital. As duas coisas têm de se complementar.

Não sentia que havia alguma promiscuidade? Que o privado leva os médicos a render menos no público?

Promiscuidade há em toda a parte. Quem tiver tendência para isso, assim será. A minha vida foi ensinar a não ser doente. Tinha os 2000 euros que ganhava no hospital e o que ganhava no privado. E basta perguntar a qualquer doente: era igual tratar no hospital público ou no privado. O bom médico trata o doente, não quer saber de onde está. Agora quem vai para médico só para ganhar…

Ainda assim, vindo de uma família com poucos recursos, conseguiu ter uma boa vida com a medicina.

Eu chamo-lhe boa vida mas ficava no consultório até às 3 horas da manhã a ver doentes e para os ver bem. Toda a vida trabalhei mas gostei do que fiz. Senti que era útil.

Quais foram os momentos mais marcantes?

Temos muitos momentos privados, com doentes. Há momentos felizes. Encontro pessoas na rua, uma mulher que me vem dizer: o meu marido ouviu-o na televisão e deixou de fumar. A gratidão do man in the street é das coisas que me dão mais alegria. Quando começámos a dar um curso na televisão, eu e a Maria de Lourdes Modesto [a rubrica “O seu motor”, na RTP, 1972] as pessoas na aldeia arranjaram uma televisão para nos ver. Uma dia ligou-me o diretor-geral da Saúde a dizer que a curva da mortalidade por doenças cardiovasculares tinha começado a descer. São essas coisas que me deixam feliz.

Se a prevenção tivesse pegado nessa altura, hoje teríamos melhores indicadores?

Semi-pegou. O governo não entendia que era bom. Pensava que iam estar a poupar dinheiro ao governo seguinte e não queriam. E com isto chegámos até aqui: gastamos 99% do orçamento da saúde com a medicina curativa e só 1% em prevenção. Não precisamos de inverter em termos de dinheiro, temos é de investir 90% do nosso esforço em prevenção.

Mas qual era a dificuldade de disseminar essas mensagem? Pudor em dizer: “o senhor está doente porque está gordo”?

Não creio que fosse isso, simplesmente eram coisas que não se aprendia no curso. Eu tinha vergonha de começar a dar uma aula sobre o tabaco, gozavam comigo. Ensinei que deviam abordar problemas de sexo, a palavra sexo quase nem se dizia. Um colega que até concordava comigo um dia chamou-me para ir assistir a uma aula dele na faculdade. A meio, um aluno perguntou: “como podemos fazer um aborto?” Respondeu-lhe: “isso não é para aqui”. Então mas se não for ali onde é que o médico aprende? Com uma sopeira numa escada? Um médico, para fazer um aborto assético, tinha de aprender. Isto era assim nos anos 80.

A medicina foi demasiado rígida durante muito tempo?

Muito formal, mas não era só aqui. Há uns tempos li um livro de um italiano que contava que tinha saído médico só de aulas teóricas. Hospitais com aulas é uma coisa do fim do século XX. Havia um grande cirurgião alemão que dizia “a minha ciência tem por trás tantas mortes”… Aprendeu a operar operando. Mas repare, todos nós temos o título de Médico Cirurgião, ainda do tempo em que se saía da faculdade sem se fazer uma operação. Se eu quiser operar uma apendicite, tenho o título, mas eu sei lá operar uma apendicite…

Nunca quis operar?

Não.

Tinha medo de sangue?

Aflige-me fazer mal, sopeso muito se devo ou não devo fazer. Enquanto pudesse fazer sem cortar preferia esse caminho.

Um clínico desenvolve a capacidade de observação. Onde via o primeiro sinal de que a pessoa não estava bem? 

Todos os médicos devem fazer uma coisa: agarrar o pulso do doente. Assim sabem logo como está a pulsação, veem se a mão está suada.

Detetam-se doenças assim?

Pode apanhar a fibrilhação auricular, uma arritmia crónica, que hoje é das coisas mais faladas. A mão doente é uma mão suada, fria. Sente-se a febre, sentimos a força da pessoa, a ajuda que está a levar de nós. Mas sobretudo é passar uma mensagem ao doente de que estamos ali para o ajudar. Quando um doente entra começamos a falar: o que ele diz dá logo sinais. Por isso se diz que a medicina é uma arte. E por isso devem ir para Medicina as pessoas que sabem que vão ajudar pessoas, e com isso vão sofrer também. Eu fui para medicina sem saber mas a minha sorte manteve-me cá.

A pessoas abusam dos comprimidos?

Os mais velhos sim, os mais novos não querem saber, quando se começassem mais cedo a vigiar tinham um melhor resultado. Quando compras um carro, sabes que até aos 10 mil quilómetros é para ir devagarinho. Nós até aos 10 anos não sabemos que devemos fazer dieta, exercício, comer fruta. A saúde é como os carros: é preciso tratar bem dos sub-20 para chegar aos 120, que é o que eu quero ter, vivo, alegre, ativo e saudável.

Gostava mesmo?

Agora já se sabe que dá até aos 142. No meu tempo, antes da guerra, vivia-se até aos 50, 60. É possível, mas é preciso apostar numa medicina personalizada, comportamental. Quando o Papa cá esteve agora escrevi-lhe uma carta. Disse-lhe que o vi na televisão, fatigado, quando foi visitar os doentes em Fátima. E se os seus bispos os tivessem ensinado antes a tratarem-se? Dizem “olha homem, não peques”. E porque não: “bebe menos, não pecas e prevines doenças”. Respondeu-me. E há umas semanas fez um apelo para o mundo inteiro a propósito do bebé Alfie e assino por baixo. Defendeu que é preciso pensar na condição da pessoa, respeitar o corpo, parecia uma aula que eu devia ter dado em Medicina.

Teve momentos angustiantes enquanto médico?

Houve um caso logo à chegada que não esqueço. Tenho pouca visão imediata de doentes a morrer do coração, porque às vezes são internados com outros problemas. Mas um dia encontrei uma doente cardíaca grave a quem iam fazer um aborto, estava no sexto mês e não a queriam deixar continuar a gravidez. Não deixei: aprendi que o agravamento do cansaço do coração parava pelo sexto mês. A partir daí é como se natureza guardasse forças para o parto. Eu e uma colega aguentámo-la. E por causa disso há um Fernando Manuel que teve vários filhos. Ficou com o meu nome. Não largámos o osso, a criança nasceu e ela viveu ainda vários anos.

Toda a gente devia ter uma consulta de prevenção?

Se seguirmos o “aeiou da saúde”, é assim. O “a” é de alimentação. O “e” é o exercício, tanto pode ir para o ténis como pode ser ir correr. O “i” é para inibir o tabaco.

Nunca mais tocou num cigarro?

Na Rússia deram-me um cigarro e acendi na brincadeira, tem menos tabaco.

Os seus filhos nunca fumaram?

Quando chegaram aos dez anos, metade dos rapazes fumavam, fumava-se às escondidas dos pais, foi assim que eu comecei também. Disse-lhes só: nós não fumamos, nem eu nem a mãe: vocês têm licença para fumar, se precisam disso para serem homens, podem fumar aqui à mesa. Nenhum fumou.

Há ex-fumadores intransigentes.

E até têm razão para isso. Acho que em Portugal a campanha contra o tabaco rendeu muito porque os portugueses pararam de fumar por causa dos outros. Voltando ao “aeiou”: “o” de ostracizar o sal à mesa, omitir os saleiros.

Algo que o governo quer fazer e tem gerado alguns anticorpos.

Em Almodôvar fizemos essa campanha e os restaurantes adotaram menos sal. E agora vamos promover receitas saudáveis.

Cozinha?

Não, mas aprendi com a Lourdes Modesto os principais segredos. Metade do sucesso que tive foi ela, que me ensinou a comer sem sal e sem gorduras. Falta o “u”, que responde à pergunta: uma consulta por ano. É o check-up anual dos carros. Se não o fizeres apanhas uma multa. Porque é que as consultas têm de ser de graça e os automóveis não? Porque é que a comida não é de graça? Acho que temos misturado as ideias boas e as ideias más. Participei agora neste movimento que propõe Princípios Orientadores para uma Lei de Bases da Saúde e o princípio 3 fui eu que sugeri: “Deve ser dada na Lei de Bases maior ênfase à educação para a saúde e a prevenção da doença”. Se a pessoa quer o médico de que gosta, paga. Ninguém proíbe as pessoas de comprar caviar. Mas o Estado também tem de garantir uma medicina comportamental, personalizada. Um dos principais direitos das crianças é ter saúde, porque é que não se ensina saúde às crianças? Os miúdos aprendem pela televisão, veem que há medicamentos, mas do resto não se fala ou fala-se pouco.

Sente o peso da idade?

Tenho 18!

Quando era miúdo lembra-se de ver alguém com 90 anos?

Não existiam. Aqui há um tempo tive um baque quando me entra um doente e diz “o meu miúdo tem 60 anos”. Era um homem de 90 anos, um velhote, mas só era velhote porque não tinha aprendido a ter saúde. Cheguei a ter uma doente que me fez uns versos aos 104 anos.

O que custa mais aos 90?

Falamos das pessoas e elas já cá não estão. A minha mãe morreu com 96 anos, já foi há 20 anos, mas por enquanto viveu mais do que eu. E a minha mulher, custou-me muito andar pelos hospitais e sentir que não era bem tratada, que não havia carinho. Foi azar talvez. Se calhar devia ter ido para o privado, mas quis ir para o meu hospital. O comum das pessoas não gosta das outras.

Sente uma perda de humanidade na Medicina?

Em todo o lado, mas sempre houve coisas assim. Antigamente escondiam-se os filhos deficientes nos currais dos porcos.

Como é que olha hoje para o país?

Estamos numa glória. As pessoas não imaginam, mesmo com toda a maldade, o que isto é comparado com outros sítios. 

Foi durante muitos anos a cara da Becel. Não toca em manteiga?

Como poucas gorduras mas gosto muito de manteiga, de maneira que tenho medo quando vou aos restaurantes. Como-a como se fosse sorvete. Pego numa bolachinha e meto um montinho.

É o seu pior pecado? E um cozido?

Respondo como a Lourdes Modesto respondeu uma vez: como cozido com todos, mas não como todos os dias. Festa é festa: no dia da festa gozem a festa, a penitência é no dia seguinte.

Janta ou come só uma sopa?

Sim, janto habitualmente. A empregada deixa-me o jantar mas deixo quase sempre umas batatas e molho para ela ver que pôs a mais.

E sal?

Não como. Faço tudo sem sofrimento.

Mas o que é pior: sal, gordura ou açúcar?

Venha o diabo e escolha! Acho que temos só de ser comedidos. O problema é que “It’s the economy, stupid”, como dizia Clinton. A economia domina isto tudo. Sal é dinheiro. As vacas marcadas para o matadouro em muitos locais começam a beber água salgada. Em 15 dias, começam a fazer edemas, pesam mais 25%. Quando compramos a carne, parte é água e sal.

A indústria alimentar tem sido um inimigo da saúde? 

Não abertamente, mas podia fazer mais e os governos têm lutado pouco.

Este ano o governo tentou avançar com um imposto sobre o sal, que foi chumbado. Teria sido uma boa medida?

Acho que sim, sabendo nós que sal a mais é um veneno… na América, há 50 anos que o Senado determinou que não se deve comer mais de 5 gramas de sal por dia. Quando começámos a intervir em Rio Maior, a média eram 25 gramas de sal por dia. As pessoas têm de ouvir isto uma e outra vez, como me ouviam a mim e à Maria de Lourdes Modesto na televisão. Tinha um professor na Faculdade que dizia que desligava a televisão, não havia outro canal para mudar.

Em março foi noticiado um inquérito no DIAP sobre transferências de verbas do Instituto Nacional de Cardiologia Preventiva para a fundação, com base em queixas. Já foram ouvidos?

Estamos a colaborar e fornecemos informação, o processo está em segredo de justiça. São questões definidas nos estatutos. Estou absolutamente tranquilo.

Pensa na morte?

Sei que vou morrer, mas não estou preocupado.

Nunca esteve ou deixou de estar?

Com 14 anos estive quase a morrer, estive em coma com uma meningite. Era o melhor aluno do liceu e o António José Saraiva, meu professor, foi a minha casa visitar-me correndo o risco de ser contagiado. Administraram-me a primeira sulfamida que veio para Portugal mas estive dois meses em casa. Quando me disseram fiquei em choque: sabia que as pessoas que tinham meningite ou ficavam doentes ou ficavam cegas. Por sorte, fiquei só com umas vertigens.

Como vê a discussão da eutanásia?

Leiam Hipócrates e não sejam hipócritas. Não aceito, mas com certeza que já morreram na minha mão pessoas em que eu terei comparticipado. Se estou a sedar uma pessoa, isso pode acontecer. Acho que o médico não deve intervir dessa forma deliberada, foi feito para ajudar a pessoa.

O que é que ainda gostava de ver?

Viver os tais 142 anos, o que é que haverá por lá para ver?