Thomas Walgrave. “Temos esse carimbo de ser um festival político”

Com “Corbeaux”, da marroquina Bouchra Ouizguen, arranca hoje em Lisboa mais uma edição do Alkantara. A última dirigida por Thomas Walgrave, com quem conversámos sobre este ciclo de dez anos e cinco edições de um festival que comemora os seus 25 anos

A cidade que acolhe o Alkantara em 2018 já não é aquela cidade periférica de há 25 anos, quando Mónica Lapa lançou a primeira edição do Danças na Cidade, no edifício da Central Tejo. Ainda assim, a génese do Alkantara como festival que assume uma série de riscos na programação, mantém-se.

Talvez agora que Lisboa se tornou no centro do mundo seja ainda mais necessário oferecer os seus palcos para um festival que toma esses riscos. O risco tem a ver com os artistas mas também tem a ver com o público – os públicos, prefiro falar sobre o público no plural. Os públicos de Lisboa cresceram muito. O público está muito bem informado, cresceu com estes artistas internacionais, aprendeu a ler os seus códigos e  hoje em dia dialoga com qualquer artista internacional que venha apresentar cá. Lisboa é dos melhores sítios do mundo em termos de público. Então, o risco é uma forma também de viajarmos juntos, entre artistas e públicos. O festival é um mediador nessa viagem em cojunto e continua a ser muito importante. 

O Alkantara tem tido de facto um papel de apoio às artes performativas, uma área em que os artistas encontram uma série de obstáculos.

É uma criação muito específica e muito exposta. Para um artista do teatro ou da dança, qualquer experiência é logo uma confrontação com o público. Um pintor pode experimentar no seu ateliê; no teatro, na dança e na performance não é assim. Tudo o que experimentamos é visível. Mas também por isso, pelo facto de ganharmos públicos que têm a possibilidade de acompanhar isso com a noção disso e ao mesmo tempo da efemeridade desta arte específica, é muito importante. 

Sublinha a palavra públicos, no plural, porquê?

Os públicos são múltiplos. O festival também tem que ambicionar sair dos públicos especializados e tentar furar os clichés sobre esta arte chamada de contemporânea e que por isso já será assumidamente, logo à partida, mais difícil ou codificada. Acho que muitas vezes a verdade é o contrário. Muitos dos espetáculos que apresentamos são contemporâneos, no sentido de falarem sobre o aqui e o agora, sobre questões muito diretamente ligadas ao mundo em que vivemos, e nesse sentido são muito mais acessíveis do que o cliché que é repetir. Daí também que essa ideia de públicos, plural, porque este é um lugar excelente para arriscar, para fugir um pouco a esta doença do marketing dos grupos target e do público-alvo, para cruzar também os vários públicos, socialmente e culturalmente. Este festival é um lugar de festa também e por aí tem uma obrigação de tornar os espetáculos acessíveis ao máximo de públicos possíveis. 

No texto de apresentação desta edição, a última que dirige, faz menção ao facto de, por ser o fechar de um ciclo de dez anos, a programação acabar por assumir um caráter algo pessoal. É uma edição muito política ao mesmo tempo, com as várias propostas de espetáculos que trazem para o palco  questões da atualidade de vários pontos do mundo. Do Japão à Palestina, entre outros. Uma série de espetáculos que nos obrigam para olhar para o agora, em várias partes do mundo. 

Esse lado pessoal, sei que escrevi isso e tenho dúvidas sobre se escolhi… 

As palavras certas?

Sim, porque desde o início sempre tentei programar, em vez de espetáculos isolados, criar uma continuidade e de acompanhar o trabalho de vários artistas no seu desenvolvimento. Uma ideia, ou um sonho, de programar mais em linhas do que em pontos. E neste fechar de ciclo senti uma certa necessidade de o fechar também nesse sentido. Quando falo nesse aspeto pessoal, é na afinidade com o trabalho desses artistas.

Uma afinidade que o público mais regular do Alkantara partilhará também.

O que acho muito bonito ao olhar para isto é ver a ligação direta com os públicos criada pelos artistas que estiveram presentes em várias edições. Artistas que criaram em Lisboa uma base de fãs que conhecem o seu trabalho. Acho mesmo bonito isto de nós, programadores, festival, estarmos assim na sombra a olhar para esta relação que se construiu entre os públicos e os artistas, já quase direta. 

Mesmo antes de conversarmos, via um post do Gustavo Ciríaco, que estreia nesta edição o “Cortado por todos os lados, aberto por todos os cantos”, a lembrar que a primeira vez que veio a Lisboa foi há 12 anos e através do Alkantara, justamente.

Sim, foi. Eu vi na altura, foi um espetáculo que me marcou muito. Por isso também era importante ter o Gustavo nesta edição. Qualquer um destes espetáculos tem a sua história específica. Em relação à outra questão, temos esse carimbo de ser um festival político. Não é um carimbo que me desagrade, é verdade, falamos muitas vezes em temas políticos. Achei sempre que o teatro e a dança são lugares muito bons para reconectar o político com a vida. Muitas vezes falamos sobre política como uma espécie de área isolada na nossa vida, uma zona operada por profissionais, os chamados políticos, que são técnicos, mas isso é um erro. É importante entendermos que a política faz parte integral da vida em todos os seus aspetos. A forma como convivemos com um vizinho ou a forma como vivemos em casal são tão políticas como a forma como organizamos o país. Acho que a arte faz isto muito bem, mas tenho ao mesmo tempo receio que este carimbo político se torne demasiado redutor. Um espetáculo como o da Sofia Dinger, por exemplo, não sei se é absolutamente político. Para mim, só o facto de um grupo de pessoas se juntar durante uma hora no mesmo espaço a respirar o mesmo oxigénio, juntar assim emoções, para mim isso em si já é político, e não sei se precisa de ser mais. Por outro lado, tive o grande privilégio de, através do Alkantara, encontrar artistas que vêm evidentemente da Palestina, do Congo, de outras áreas do mundo onde é praticamente impossível hoje em dia fazer qualquer trabalho que não tenha uma implicação política. Um espetáculo sobre o amor na Palestina será inevitavelmente um espetáculo político. Não quero fugir a isso mas não quero também que o festival seja reduzido só a esse carimbo. 

Que balanço faz destes dez anos e cinco edições de Alkantara?

O Mark Deputter fez ainda a edição de 2008, eu entrei na seguinte. Foi um período de muita luta. Atravessámos um momento que não foi fácil em Portugal, nem para a cultura nem para as outras áreas da sociedade. Acho que a cultura é um lugar muito intenso e, nesse sentido, muito rico para operar um festival durante dois anos. Não sinto nenhuma amargura em relação a isso, pelo contrário. Aprendi, aprendemos muito. Foi uma oportunidade para encontrar pessoas absolutamente incríveis. Também foi duro, muito duro. Há um certo cansaço disso. Sem nenhuma amargura, há um cansaço, uma noção de que talvez seja bom passar agora a responsabilidade a outras pessoas. Mas o balanço é de um tempo inesquecível para mim. Em termos de paisagem artística, já é outra questão que precisaria de muito mais tempo e espaço.

Não quer comentar no espaço que esta conversa permite?

É um tópico muito grande, mas acho que o setor se internacionalizou muito. O Alkantara teve um papel importante mas não é o único jogador nessa internacionalização, até porque se trata de um fenómeno de conjuntura e não só em Portugal. Mas aqui temos a sorte de ter não uma, mas várias gerações de artistas de teatro e dança extremamente talentosos. Sem querer causar conflitos diplomáticos, em comparação com um país como Espanha, por exemplo, acho que devemos orgulhar-nos muito e cuidar bem destes artistas que são também embaixadores culturais do país. E, nesse sentido, o balanço só pode ser mesmo muito positivo.