Bernardo Pires de Lima. As relações transatlânticas estão “no ponto de maior tensão” desde 2003

As experiências que agora foram dadas à estampa no seu novo livro são o resultado de viagens a 28 capitais europeias

O ano de 2017 parecia ser o tudo ou nada para o projeto europeu e o politólogo Bernardo Pires de Lima decidiu ir ao terreno ver a realidade com os seus próprios olhos. Agora, essa experiência foi dada à estampa no livro "O Lado B da Europa – Viagem por 28 capitais", publicado pela Tinta da China. O i conversou com o politólogo sobre a sua experiência, o futuro do projeto europeu e de que forma a nova administração Trump, a Rússia e a China poderão influenciá-lo neste novo momento geopolítico. Pires de Lima considera que "existe um cenário de continuidade" que poderá resultar numa União Europeia a várias velocidades, mas alerta que o cenário de desintegração não pode ser afastado. 

O seu livro chama-se “Lado B da Europa”. Que lado B é esse?

O Lado B significa um contraste com uma espécie de História que nos é contada diariamente sobre o projeto europeu. O lado A que nos é contado é excessivamente simplista em relação à História da Europa das últimas seis, sete décadas. É evidente que tem um cunho enorme de verdade – estabilidade, paz, prosperidade -, mas o momento europeu não se esgota nos méritos das seis décadas de integração. Tem lados perversos, lados perigosos, mas também com mérito e, portanto, são todos os lados que multiplicados por 28 fazem o momento europeu. Alguns são mais negativos, outros são mais obscuros, outros não são falados e outros são pouco potenciados no seu lado bom. É um lado B que se desmultiplica por estas variáveis todas e acho que é esta complexidade de variáveis que explica o facto de percebermos pouco do que nos rodeia na Europa, nos conhecermos mal entre europeus e de termos respostas que muitas vezes não estão à altura dos dilemas que atravessamos.

O que o levou a avançar com esta experiência?

É uma predisposição que tenho, profissional e de vida, de não me acomodar com as coisas que vou fazendo e de querer ir sempre um pouco mais além, arriscando. Em 2016, publiquei três livros e achei que poderia ir ainda mais além com outra ambição. Quando olhei para o ano de 2017 era facilmente identificável um conjunto de eventos, sobretudo eleitorais, que iriam marcar o ano e a História da Europa, como talvez nos últimos 25 não aconteceu. Podia ser o tudo ou nada do projeto europeu, tal como 1989-91 também o foi. De qualquer das maneiras, o ano não se esgota em quatro ou cinco eleições. Foi olhar para o ano e perceber que estava aqui um ano que era preciso acompanhar de perto, não no conforto de Lisboa nem das televisões, mas indo ao terreno falando com as pessoas. O livro tem uma dimensão de interpretação minha sobre os assuntos que me foram dados a conhecer que estavam a marcar os debates nacionais.

Qual foi a grande conclusão que retirou da experiência?

Não nos conhecemos entre europeus e simplificamos o olhar sobre os outros em função das suas zonas geográficas. Achamos que a Escandinávia funciona mais ou menos de uma forma homogenia, os bálticos de outra maneira, o leste europeu, o sul da Europa, o eixo franco-alemão. Tudo isto tem uma palete de cores interminável. Só levantando os assuntos e as perceções e os dilemas da história recente e de como se olha para o futuro próximo é que se percebe as singularidades. É a gestão das singularidades, uma gestão política em cada Estado e comunitária, que fazem com que o momento seja mais ou menos sensível ou gerível. O contributo do que o livro pode dar é tirar uma grande fotografia à Europa com os riscos e as oportunidades que estamos a atravessar. Há riscos que vêm da Rússia, do Reino Unido, dos Estados Unidos, da Turquia e do Mediterrâneo que nós não associamos à política comunitária, mas que têm uma tremenda influência. Há riscos da própria condução das políticas comunitárias porque, entre outros factos, há uma bolha funcionalista que inibe que em Bruxelas se conheça a realidade com detalhe em cada país. A política europeia não é cor-de-rosa: é um espaço de facto de grande liberdade, não há tanta prosperidade no mundo como há entre os 28, há muito mais segurança do que noutras zonas do mundo, não podemos comparar, mas há lados muito negros. E esconder os lados negros não ajuda a encontrar soluções.

Que lados são esses?

O lado negro é um lado de certa corrupção sistémica, ou seja, associado à cristalização dos grandes partidos pró-integração, normalmente os dois grandes partidos do sistema. E associada a essa cristalização está um certo nepotismo e corrupção, que varia de grau em função dos holofotes colocados ao Estado.

Como a Roménia?

Há uns clichés sobre a Roménia que não comprovei e há outros lados mais positivos sobre o país que nunca vejo expostos. Ou o lado maltês, que é um caso que nunca vem nas notícias, mas que condensa muitos dos anátemas da construção europeia, talvez por estar de fora dos holofotes. Quanto acontece um caso como a morte de uma jornalista que estava a investigar corrupção até ao primeiro-ministro, aí Malta já tem algo. Quem conduz a política europeia não pode estar surpreendido, porque senão está a cumprir mal o seu papel em Bruxelas ao não conhecer a realidade dos Estados-membros. Há outros lados perversos. Há um grande ceticismo em relação aos méritos da moeda única. Há uma ferida aberta ainda contra os países do Norte naqueles países que mais sofreram com a troika, nomeadamente Grécia e Chipre.

Critica muitas vezes os políticos e partidos tradicionais que se cristalizaram e elogia bastante o presidente francês Emmanuel Macron. Ainda partilha dessa esperança?

Não vivo dessa esperança. O momento francês era um momento de limite, de salvação ou derrocada da União Europeia – era isso que estava em causa – que não havia outra hipótese senão entusiasmar-nos com essa candidatura. Para além dos méritos da candidatura, por ser uma geração nova, ser articulada, ter exposto com coragem os argumentos falaciosos do outro lado ao desmontá-los de A a Z em direto, trazia sangue novo. Ninguém que vota num partido ou candidato tem de concordar a 100%, não é isso que define o voto. O que define o voto muitas vezes é o contexto limite e quando se chega lá. O que aconteceu em 2017, em França ou na Holanda, foi que as pessoas não tiveram dúvidas. Perceberam que era preciso mobilização e ir às urnas porque o outro lado era absolutamente catastrófico. As pessoas deram um sinal de “presente”. Podemos dizer que ‘bom, mas isso em condições de normalidade política não acontece”, está bem, mas a democracia quando não é entusiasmante do ponto de vista das agendas ou em clima de normalidade as pessoas não se sentem motivadas para ir definir uma posição.

O que ele fez [Macron] foi com uma agenda impossível – pró-europeia, pró-NATO, pró-globalização e pró-imigração – vencer. Isso não foi um sinal francês, mas comunitário. É desse lado que me coloco. Como ele corporizou num momento limite essa agenda, evidente que não posso deixar de partilhar o que ele representou. Agora, não deixo de ser crítico de medidas que ele toma. Não sou acrítico de nada. Também me entusiasmei com o presidente Obama, mas não o deixei de criticar durante oito anos. Também não tenho entusiasmo com o presidente Trump e se tiver que o elogiar por alguma decisão, não tenho problemas nenhuns com isso. Não vivo obcecado com a trincheira. Não é esse o meu papel.

Acha que Macron conseguirá, com o seu ímpeto, reformar a Europa?

Ninguém é capaz sozinho. Como a expectativa dele é ter a Alemanha no barco, no calendário até às europeias do próximo ano isso não vai acontecer, o que não quer dizer que em função dos resultados, que até podem dar um novo oxigénio aos movimentos anti-União Europeia, que não caia a ficha em Berlim e aquela grande coligação perceba que tem de contribuir para a agenda de Macron. Ele tem um programa maximizador muito ambicioso sobre as reformas da zona euro; percebeu que com o Brexit há uma continentalização da política europeia, centrada nos 19 da moeda única. Para haver reformas têm de ser partilhadas pela Alemanha, que é ceptica de um conjunto de propostas. Há outras propostas que com uma cadência, talvez menos rápida, podem ser compradas por Berlim, mas Berlim também não vive sozinha e não gosta de carregar o fardo da liderança, ao contrário do que muita gente pensa. Há muitos hardliners no Norte, mais do que na Alemanha, e, portanto, esses países também têm voz no contexto financeiro europeu. Uma das simplificações analíticas é ver o foco todo em Berlim ou Frankfurt [sede do Banco Central Europeu], mas isso não é verdade. A Finlândia e a Holanda também contam para o debate. Uma das coisas que percebemos já no inicio de 2018 foi que a Holanda quer ser uma espécie de terceira via entre Paris e Berlim. O primeiro-ministro Rutte tem uma agenda de motivação de países bálticos e nórdicos que faça um contraponto ao que pode ser um reforço do eixo franco-alemão, o que levanta muita suspeição. Ninguém quer um diretório a controlar países médios e pequenos. Neste momento, estamos numa fase em que quer grandes quer pequenos estão muito táticos a perceber qual a força desse eixo. A Polónia e a Hungria já se colocaram num determinado debate, a Holanda está a colocar-se numa terceira via, a Finlândia não vai abdicar da sua ortodoxia financeira, os países do Sul têm ensaiado uma geometria variável com as cimeiras, onde a França tem estado presente, mas que têm perdido gás por querer estar mais com Berlim. É muito difícil gerir a complexidade europeia. O lado B é exatamente a demonstração de que a Europa é muito mais complexa do que simplificação que nos é transmitida.

Nessas novas geometrias variáveis, onde é que o novo governo italiano entra?

O governo italiano é a lebre de uma recauchutagem da Frente Nacional francesa que está na ressaca da derrota, mas que não morreu. É preciso perceber que o contexto do Brexit triangulariza a política europeia com um eixo franco-alemão que se está a tentar reequilibrar novamente. A Itália também é um grande [Estado], mas está em deriva completa: não afina pelo entusiasmo do presidente Macron, mas também não está num processo construtivo de reformas da União Europeia, como a Alemanha pode estar predisposta. Todos os partidos com força nas eleições italianas tiveram um discurso eurocético, até o Partido Democrático. Isso é um dado novo num Estado grande e é uma solução governativa completamente sui generis, porque mistura a extrema-esquerda com a extrema-direita e depois tenta encontrar um tecnocrata para primeiro-ministro com um presidente que acaba por tutelar todas as funções governativas. Penso que pode ser para queimar ao pôr as rédeas em inexperientes políticos, em projetos irrealizáveis, em choque de egos e, portanto, dando-lhes esse beneficio da dúvida envenenado.

É bastante arriscado…

É muito arriscado. Mas o facto é que há uma conquista de terreno por parte desses partidos, que deixaram cair medidas impopulares, como a saída do euro, na campanha por razões meramente táticas. Ninguém acredita que abdicaram disso ideologicamente. Ponho mais o ónus da responsabilidade na ausência de forças mobilizadoras do discurso europeu. Para mim, é muito mais interessante perceber o porquê dos partidos italianos terem abdicado de uma agenda construtiva pró-europeia do que estar constantemente a culpabilizar os partidos anti-europeus. A agenda deles é conhecida há muitos anos, têm financiamento estrangeiro e posicionamentos na agenda italiana conhecidos. É preocupante, é um risco e pode ser uma batata quente que vai prejudicar os próprios partidos populistas, mas de facto não sou muito partidário da política de terra queimada. Ou seja, de entregar o Poder para se desmembrarem ao executarem esse Poder. Tem um custo muito grande na coesão política europeia, que é o grande desafio deste governo. Como é que os países da moeda única, em primeiro lugar, e depois do contexto da União europeia garantem os mínimos indispensáveis de convivência dentro de uma grelha democrática, plural, de respeito pelas liberdades e Estado de Direito? Esse é o grande desafio.

Falou dos partidos do centro que têm a responsabilidade de defender o europeísmo, mas que não o fazem. Até certo ponto não lhes podem ser atribuídas responsabilidades, como a aplicação de austeridade, por afastarem os cidadãos do projeto europeu?

Depende de cada país. Os índices de europeísmo em Portugal não decresceram por causa dos anos da troika. Tem a ver com as condições de estabilidade que o sistema oferece. O sistema português é tão assente num concerto entre os três principais partidos da governabilidade – agora há mais dois – que as pessoas sentem confiança com essa frente, independentemente das figuras. Há uma grande estabilidade eleitoral e não há partidos que amedrontem os três grandes no sentido de lhes roubar o protagonismo. Como esse concerto pró-europeu está garantido, a que acresce a Presidência da República, um sentimento comum, a comunicação social, as universidades, etc, os efeitos, por mais perversos que sejam, do programa da troika não se sentem tanto nessa frente. É evidente que na Grécia, onde houve transformações dos partidos muito aceleradas e os programas tiveram pouca sensibilidade para acompanhar as transformações partidárias, a polarização é muito maior e abre muito mais brechas à esquerda e à direita. Isso também está a acontecer em Itália e aconteceu em França, em que surgiu um movimento mais europeísta do estilhaçar dos dois grandes, mas há outros países onde há outro fenómeno por trás, com extremos anti-moeda única, anti-EU, anti-Schengen, anti-comércio a ocuparem espaço ao centro e vários governos. Portugal tem valências interessantes para perceber como é que se acomoda as tentativas populistas. Temos um sistema estável, temos uma sociedade que não é polarizável, mesmo que nos anos da troika tenham havido alguns picos. Não é a Grécia no sentido da radicalização dos movimentos sociais.

Tivemos as maiores manifestações desde o 25 de abril…

Em Atenas provavelmente terminaria em violência. Os radicalismos associados a esses movimentos sociais ou políticos têm uma tradição muito grande. Em Portugal, há uma cultura de compreensão sobre os méritos de pertença à União Europeia, como solidificou a nossa democracia e produziu um desenvolvimento económico brutal. As pessoas têm isso enraizado. Podemos criticar, podemos não apoiar, podemos discutir o Tratado Orçamental, mas não pomos em causa [a pertença à EU]. Há países que ultrapassam essa barreira – e alguns com razão, porque o que recebem em troca não é visível. Foi isso que vi na Grécia, Chique e Itália. Vi muita gente de vários setores de atividade, mas também elites, que há dez anos estavam satisfeitas com a pertença ao euro que hoje acham ser um anátema, até para a sua própria atividade.

Também não vejo um acompanhamento à situação italiana que ela requer na imprensa. Não vejo uma preocupação sustentada com Itália, há uma desvalorização da realidade italiana e as pessoas não levam a sério os vários riscos. Houve excesso de pânico em relação ao Brexit e excesso de desvalorização em relação a Itália. Vivemos sempre numa espécie de euforia e depressão, nunca encontramos um meio-termo de sensatez.

Qual o futuro da União Europeia? Desmembramento, integração ou uma terceira via?

Há um cenário de continuidade que poderá ter geometrias variáveis nas velocidades da integração. Quem está num circulo, está; quem está noutro, está. E vai-se convivendo mais ou menos com isso, que tem sido o modelo mais ou menos informal. O espetro da desintegração existe. Se o processo do Brexit for muito mal gerido, poderá trazer repercussões para outros Estados-membros. Evidentemente que mais nenhum está em condições de sair como o Reino unido, que tem moeda própria, uma economia muito pujante, uma grande praça financeira e relações com o mundo inteiro. Um país como a Hungria pode levantar a voz a Bruxelas, mas também é o país que mais beneficia com os fundos comunitários no rácio com a população que tem. É altamente dependente, mas está a encontrar alternativas na Rússia.

Que alternativas tem a União Europeia no seu relacionamento com o Reino Unido e o Reino Unido com a União Europeia e resto do mundo?

O único cenário que encontro é encontrar-se um modus vivendi que seja benéfico para os dois lados e é essa a gestão das negociações que está em cima da mesa. Já ninguém quer uma rutura brutal e intempestiva. O acordo terá de ser aprovado no parlamento [britânico] e terá de ser satisfatório para todos os partidos, além de satisfazer os agentes económicos, que, no fundo, é isso que está em causa. Garantir o acesso mínimo com as melhores condições possíveis aos serviços financeiros no campo comunitário, das exportações e da livre circulação. Não há liberdade comercial – e esse é um dos parâmetros por detrás da UE – sem liberdade de circulação. Não se pode abdicar disso. Vai-se chegar a um entendimento que será o satisfatório, apesar desse custo satisfatório ser muito mais elevado para o Reino Unido do que para a União Europeia, que tem 27 economias e um mercado comum a todas. É um monstro económico no mundo. Quem perde mais é o Reino Unido por não ter uma alternativa à altura.

Não poderá ter essa alternativa nos Estados Unidos ou na Commonwealth?

Não. A Commonwealth vale 3% do comércio externo do Reino Unido. É ridículo. É um mito. 51% das exportações do Reino Unido vão para a União Europeia. Há uma dependência mútua e é encontrar um modus operandi para que essa dependência não sofra custos. Não é bom que um Estado-membro queira sair, principalmente um dos três grandes, ainda para mais um que tem um alinhamento atlântico caro a Portugal. Acho que o Reino Unido vai tentar encontrar, não nos Estados Unidos, mas a Norte, na Escandinávia, nos bálticos, no Benelux, sobretudo na Holanda, uma zona de maior integração e envolvimento. Se os Estados Unidos têm a capacidade de acompanhar uma ligação mais estreita com esse bloco, em detrimento do resto da União Europeia, também tenho dúvidas. A política desta administração não é estar com um bloco, mas dividir toda a gente. É usar o mecanismo bilateral e não regional ou multilateral. Não me parece que seja atrativo no código desta administração que abdique de uma região para ir para assumir outra como parceira privilegiada. Vai usar o facto do Reino Unido estar mais vulnerável e sozinho para negociar um acordo, sempre mais vantajoso para os Estados Unidos. O código da União Europeia é win-win, completamente diferente. Por isso é que não há match entre a União Europeia e os Estados Unidos.

As relações transatlânticas podem estar no maior ponto de tensão desde 2003?

Estão no ponto de maior tensão desde 2003, sendo que a ressaca de 2003 coseu – e muito bem – as relações. Os candidatos que sucederam – exceptuando talvez Espanha – ao senhor Schroder e Chirac, mas também ao senhor Blair e Brown, foram eleitos com um programa de amizade com os Estados Unidos: Merkel, Sarkozy e Cameron. Todos perceberam que se tinha chegado a um clima de tensão. O clima atual é diferente, é mais perigoso. Apesar de tudo, a administração Bush era conhecida, o pessoal político era muito conhecido por vir de muitas administrações republicanas anteriores. A política externa fazia muitas pontes com o Partido Democrata e os partidos socialistas e sociais-democratas na Europa, que estão próximos do Partido Democratas, tinham ali muitas pontes. Todas as guerras do senhor Bush e Clinton foram aprovadas no congresso pelos dois grandes partidos. Houve mais debate e tensão fora do congresso do que dentro.

Esta administração não é conhecida. O pessoal político desta administração não é conhecido na Europa. Não se sabe com quem dialogar no comércio, se é com o secretário do Comércio ou se com o círculo próximo de conselheiros do presidente. Não se sabe se o que o presidente diz é o que vai fazer. Não há confiança mútua e isso é muito grave porque custa a recuperar. Não digo que a administração seja uniforme na prepotência ou no unilateralismo desvalorizador da UE. Esta administração traz uma grande intempestividade e, portanto, não é possível prever o próximo quadro e nas relações comerciais é importante. É a relação comercial mais forte do mundo, é onde o maior volume de investimento multilateral e bilateral se dá, se localiza a maior quota de exportações no mundo e onde há um mercado novo de energia. Toda a América do Norte será exportadora de energia e é natural que seja para a Europa, sendo que os Estados Unidos têm uma grande vantagem competitiva e estão a usá-la.

Os Estados Unidos estão a ficar isolados com a saída do Acordo de Paris, abandono do Acordo Nuclear com o Irão e agora com a transferência da embaixada para Jerusalém?

Aos olhos dos europeus, sim; aos olhos do que é o programa da administração não tira o sono a ninguém. A administração foi eleita para dar murros na mesa no dia e no momento em que entender e isso é valorizado pelo seu eleitorado. Como todas as decisões internacionais dos Estados Unidos são para consumo interno, mesmo que tenha consequências internacionais, o racional do decisor americano, seja congressista seja presidente, é interna. Toda a política americana é local e o rasgar do acordo do Irão tem uma acomodação dentro de uma certa base eleitoral em Estados [norte-americanos] específicos. A parte do Acordo de Paris também: é sensível a uma agenda económica interna, sobretudo de Estados onde a agenda tem de ser dinamizada. Desvalorização da UE, NATO e Nações Unidas. Não é novo, mas chega a um extremo até na metodologia em que é comunicada. Acordos comerciais: a administração foi eleita para rasgar acordos comerciais, mas o que tem feito? Não tem rasgado, mas anunciado que vai rasgar e tem aqui e ali solto algum arrependimento. É difícil interpretar se há um isolacionismo comercial perdurará ou se é meramente tático para a base eleitoral, que ainda não terá desmobilizado na altura das eleições para o congresso ou presidenciais. Como a administração conhece o seu eleitorado e é para ele que lidera – este não é um presidente dos Estados Unidos, mas da sua base eleitoral e nunca escondeu isso –, tudo aquilo que está a acontecer entre a dinâmica anúncio e concretização faz com que seja difícil dizer se é isolacionismo ou se é tático para recuperar alguma vantagem negocial mais à frente. Ainda há muitos pontos de interrogação no ar e a administração está lá há apenas um ano. Ainda é cedo para tirar uma série de conclusões.

Todas as ações unilaterais colocam em risco as relações com a Europa, mas que consequência é que pode ter uma eventual rutura em relação à Rússia?

Qualquer contributo para a desagregação ou falta de coesão da UE é um chocolate para a Rússia. No fundo, e isto é perverso de se dizer, a UE está num momento de dilema de como é que sai das ressacas da crise financeira, da vaga de imigração e dos ciclos eleitorais. Tem um problema de coesão interna. A agravar aos problemas endógenos tem dois fatores: o da administração norte-americana ser adepta da desconstrução europeia e, portanto, celebra o Brexit e vai a Varsóvia premiar um governo nacionalista anti-Bruxelas. Do lado de Moscovo, é o mesmo. Perverso é termos um continente entalado entre dois fatores de desagregação e, penso eu, com o Russo a ser muito mais agressivo: patrocínios partidários, guerra, militares no terreno, mísseis apontados, etc. No meio disto, a China com cheque e charme e dinheiro fresco. A Europa está numa posição de enorme tensão. É difícil gerir isto por ser um momento geopolítico muito sentido. Guerras no Mediterrâneo, refugiados, Turquia e Brexit a encurtar o espaço, menos força, menos relações exteriores e a China a intrometer-se nos elos mais fracos e apetecíveis de acordo com a sua geopolítica.

A Suécia começou a distribuir 5 milhões de panfletos a explicar o que a sua população deve fazer em caso de guerra. Existe uma nova guerra fria?

Não existe uma nova guerra fria. Não sou partidário de repetições da História com outros nomes. Não acho que tenha aplicabilidade. Há relações com Moscovo, nem que seja de dependência económica ou energética. Não há cortinas. Há sinais preocupantes de intromissão em processos eleitorais, de informação e propaganda; de que não se preocupa com a construção europeia. Ninguém espera uma invasão da Alemanha ou a construção de um muro em Berlim. Há outras formas mais sofisticadas e o senhor Putin, que merece todas as críticas e mais algumas, tem uma estratégia para o seu país: mascarar as debilidades internas com uma mitologia imperial externa, que hoje em dia não precisa de avanços com tanques. Basta a Sputnik, a Russia Today e a desinformação em referendos, como na Catalunha.

Com a utilização de armas químicas na Síria e os bombardeamentos dos Estados Unidos, Reino Unido e França, estivemos perto de uma escalada com a Rússia?

Não tenho nenhuma interpretação apocalíptica sobre o momento que estamos a atravessar. No contexto europeu percebe-se que há uma dimensão de defesa e ansiedade securitária em muitos países. Bálticos, Escandinávia, Leste Europeu. Isso é motivado pela desproteção da UE, ambiguidades por parte da administração europeia e uma grande agressividade russa. Há países que têm ou que recuperaram o serviço militar obrigatório, mas isso é pacifico. É mais alarmista aos nossos olhos por não olharmos para a Suécia como uma potência militar. Há aqui um erro de natureza interpretativa e alarmamo-nos sempre mais. A Suécia tem uma grande capacidade militar, não faz parte da NATO, mas tem uma grande colaboração com a NATO e um dos temas no debate sueco é a adesão, que só se dará em conjunto com a Finlândia. Os dois debates não têm consenso partidário, mas de qualquer das maneiras foi um dos temas levantados em várias eleições. Apetrechamento militar, cumprimento dos 2% do PIB, regresso do serviço militar obrigatório significam guerra? Não. Os Estados podem investir militarmente apenas por dissuasão.

A exigência de Donald Trump dos 2% do PIB para a Defesa, também é outra questão…

Não é a exigência de Donald Trump. Tem pelo menos 11 anos em várias declarações finais das cimeiras da NATO. Nada no Tratado de Washington fala do cumprimento de 2%. O que há é um compromisso de médio prazo de progressivamente os Estados acompanharem esses 2%. Há mais Estados a cumprirem isso e o que vai acontecer é uma NATO a várias velocidades. Os Estados Unidos são o grosso da NATO e esta administração acha que os Estados põem 2% do seu PIB num mealheiro comum. Não é assim que funciona. Os Estados têm naturalmente de investir em capacidade militar por razões nacionais ou regionais. Os 2% do PIB em Defesa podem ser em grande parte para investigação, que é fundamental à indústria de defesa. Não tem de ser em tanques e mísseis, não é isso que está em causa. Os Estados Unidos têm 600 mil milhões de dólares em orçamento anual e uma grande percentagem é só para investigação. O que vai gerar é pressão sobre alguns [Estados] para passarem de 1,2 para 2% em poucos meses e isso não vai acontecer. Há Estados que cumprindo caiem nas boas graças de Washington…

Os da Europa de Leste…

Os dos bálticos sobretudo. Admito que Polónia e Roménia. Para depois também colherem presença norte-americana permanente e mostrarem a Moscovo que têm um grande amigo em Washington, etc. Aqui na Península Ibérica isso não vai acontecer. Não é para ficar refém dos ditames do senhor Trump ou de outro qualquer, mas perceber que não é possível continuar a ser credível no plano interno e externo, com o dilema geopolítico de que falei, reduzindo a nada a credibilidade militar e de segurança dos Estados. Podem ser mais bem gastos? Podem. Podemos não gastar 55% do orçamento da Defesa em pessoal? Talvez. Podemos racionalizar os custos a um contexto mais comunitário ou a um grupo de países para que haja uma indústria de fardamento comum?

Isso já está a ser desenvolvido com o “exército europeu”.

Sim, já está. São propostas que não colhem muito entusiasmo em Washington porque parece uma coisa embrionária de não complementaridade à NATO e ainda tem de ser vendido. Ao não estar, o Reino Unido retira força ao quadro europeu, apesar de haver pessoas de um lado e de outro a quererem, principalmente no plano das lideranças políticas, para que não se caia na tentação de pôr os acordos de defesa do Reino Unido com países da UE ou mesmo a sua participação em cooperações reforçadas desta ou daquela natureza em causa, que não seja um dano colateral do Brexit. Essas dimensões de segurança devem continuar a ser acauteladas.

Com a administração Trump e a ascensão da China e da Rússia poderemos vir a assistir à rutura do multilateralismo a favor do bilateralismo na condução das relações internacionais?

As duas convivem sempre. Há momentos na ordem internacional em que um prevalece em função da força que os grandes imprimem no processo. O bilateralismo é a regra, não é o multilateralismo. Os Estados continuam a privilegiar as relações bilaterais comerciais, políticas e diplomáticas. Há regiões no mundo, no caso extremo da UE, em que se privilegiou, até por uma questão de maximização de escala e de atuação, um plano mais comunitário em muitas matérias. Nenhum Estado-membro pode assinar acordos de comércio externo bilaterais. Isso é uma agenda geopolítica, e bem feita pela Comissão [Europeia]. Esta administração norte-americana quer dividir para reinar com relações bilaterais, sendo que o resultado final tem de ser sempre vendido internamente como um ganho. A Rússia atua mais ou menos da mesma maneira, que é horrível dizer, e a China usa os dois mecanismos, mesmo que os Estados Unidos também os usem. Há uma preferência pelas grandes potências das relações bilaterais porque é isso que retira força a um grande bloco como a UE e permite que as grandes potências tenham vantagem competitiva mundial. A força da UE reside na sua coesão e na maximização com que atua no plano interno e externo de forma mais comunitária.

Não acha que há um clima de medo?

Não, acho que há um empolamento sobre o clima apocalíptico que se vive. De qualquer das maneiras, e tal como não digo que a desagregação da UE não seja um dos cenários, também não posso dizer que daqui a umas décadas não possa haver uma guerra, mas ainda não estão criadas as condições nem parece que isso seja do interesse russo, chinês ou norte-americano. Outra coisa são os focos de outras guerras terem implicações no nosso quadro de proximidade e aí já está mais que provado que há uma frente de guerra civil, que não tem gestão interna nem externa e que provoca instabilidade na Europa via refugiados, fluxo de terroristas que vão alimentar o nosso medo.

Como vê os independentismos na sua relação com a União Europeia e Estados-membros?

Há vários independentismos. O independentismo escocês é fruto de uma negociação com o parlamento em Londres, com o governo britânico, totalmente dentro de uma grelha jurídica e aceite. Não é unilateral e tem um roteiro acordado. Se tivesse sido aprovado, a União Europeia não teria outra margem senão dar consentimento aos resultados porque previamente houve o consentimento do Estado soberano. O caso espanhol é completamente diferente: não tem acomodação nem em Madrid nem na União Europeia. É unilateral, é feito sem grelha, é feito sobre uma pressão intensa de forças que não têm a representação da sociedade de uma forma mais ampla.

Mas ganharam novamente as eleições depois da ativação do artigo 155.

Num parlamento completamente dividido e em que o principal partido defende a federação, o Ciudadanos.

Mas a maioria parlamentar é independentista.

Tem uma maioria de dois deputados. Isso não é representativo. Quando a sociedade se expressou em referendo ou eleições, com a contingência absurda em que ocorreram, sob pressão e candidatos presos, foi num contexto absurdo e não de normalidade como o escocês. Era um contexto de excecionalidade constitucional. Não mobilizou a sociedade por diversas razões. Não é um processo – não quer dizer que a ideia final não seja colhida – colhido pela sociedade catalã e as forças que estão a forçar o processo, a metodologia e o resultado não são sensíveis a uma fatia da população catalã. Como não são sensíveis perdem legitimidade interna. Depois há a questão do comportamento do governo espanhol, que é inflexível, mais jurídico do que politico, que abre muito timidamente o dossier da federação.

Há ainda forças políticas que entraram de rompante no sistema para partir os dois grandes e que estão a conseguir fazê-lo – a semana passada pela primeira vez sondagens nacionais que deram os dois novos à frente dos dois antigos, e isso é totalmente novo – e um deles tem soluções que acomodam um roteiro diferente, que não é de choque. Preserva a constituição e não é partidário de uma independência tout court, mas de qualquer das maneiras encontra ali um caminho de terceira via. É a terceira via federativa onde isto tudo vai desembocar. Não vejo condições nem acolhimento internacional europeu para a independência. Essa é uma das táticas da falange independentista, que é ter alguém no governo em Barcelona e ter alguém na Europa a europeizar a independência, que é o sr. Puigdemont. Esta última não tem resultado. Quando cheguei a Bruxelas o sr. Puigdemont tinha acabado de chegar e as conversas que tive no Ministério dos Negócios Estrangeiros belga foi como é que isto tinha impacto nos movimentos independentistas belgas e a resposta foi muito simples: “isto é a vacina para os movimentos. É um processo tão caótico, tem tantos custos políticos, económicos e sociais à Catalunha que é uma receita que não pode ser seguida aqui [Bélgica] internamente e nem o mais louco independentista belga quer colar-se a este processo. Puigdemont está-nos a fazer um favor em termos de unidade”.

Se o primeiro-ministro não está disponível para negociar…

Ele agora diz que sim.

Para se avançar para uma federação espanhola é necessário alterar-se a Constituição.

Há um processo embrionário que deu entrada no parlamento há uns meses, apresentado pelo PSOE e PP, que suscita um estudo. Acho que é o que vai acontecer, mas não sei é se vai ser protagonizado ou gerido por este governo. Ou seja, não sei se a extensão deste período de impasse não forçam a ida às urnas nacional. Aí, os cálculos já são outros. Temos aqui quatro partidos muito equilibrados e é totalmente novo no quadro espanhol. Não tem a ver com questões europeias ou de moeda única, mas com questões internas.

Quais são as consequências da situação catalã para Portugal?

Parto do princípio de que nenhum governo português, a não ser que seja um governo de extrema-esquerda, nem nenhum Presidente da República terá qualquer tipo de manifestação de solidariedade com o independentismo catalão. Outra coisa é, em função da dinâmica federativa espanhola, haver algum acompanhamento do processo ou pelo menos sinalizar que Portugal acompanha com satisfação  que se está a encontrar um modo de convivência. Cinicamente, acho que do ponto de vista dos riscos económicos pode ser uma oportunidade para Portugal, porque a deslocalização das sedes das empresas poderia ter aqui um porto de abrigo, mas não é isso que está a acontecer. Há outras zonas competitivas que atraem as sedes sociais e fiscais.

Não partilho daquela tese de que um Espanha mais pequena é melhor para nós, porque neste contexto europeu tudo o que seja fatiar e desagregar pela força ou unilateralismo a estabilidade dos países é um contributo a Moscovo e a todas as forças políticas que não acreditam na paz, na estabilidade e no processo de integração.

Em Portugal as forças eurocéticas deixaram de o ser. Já não se houve críticas à União Europeia e à NATO como antes. Como vê o posicionamento do Bloco de Esquerda e do PCP no posicionamento sobre estes dois temas desde a formação da geringonça?

É uma posição de cedência. Numa frente em que não há nenhum tipo de coincidência com o Partido Socialista e em função de um objetivo, que é manter o apoio parlamentar a um governo minoritário, abdicam de bandeiras que também não colhem grande adesão. Poderão colher na sua base eleitoral, mas não será por aí que conquistarão novos votos. Em função desse objetivo silenciam essas frentes, mas não penso tenham sido geneticamente abolidas. Como não são pontos de agenda política em função do modelo governativo encontrado, parece-me que é taticamente inteligente do ponto de vista deles. Mais dia, menos dia vai ser recuperada com o Tratado Orçamental, UE e agenda de reformas da zona euro.