Fábio Neves Marcelino. Como uma fresta na parede

“Canto Irregular” é um pequeno e discreto livro de poesia em que se pressente o trabalho profundo de quem se debruça sobre as imagens para delas extrair a violência de um instante

Se nada neste mundo é fidedignamente cognoscível, se andamos por aqui a driblar, mesmo que com outros rótulos, entre empirismo e platonismo – e se apelidamos esse drible de pós-moderno para fingir que temos ainda o chão sob os pés e uma bola entre as mãos –, podemos começar por assumir o seguinte: escrever poesia, fotografar, criar, não nos permitem conhecer o mundo, muito menos a nós próprios. Isso é apanágio de gurus e dos ansiolíticos (quando os primeiros falham, os segundos são convidados a intervir). Escreve-se poesia, fotografa-se, pinta-se, cria-se – porque isso nos permite, melhor ou pior, experimentar o mundo, experimentar o que somos. E o que somos é essa performance contínua, esse desfiar de máscaras, esse trânsito de espelhos, onde a mais luzidia superfície e o reflexo mais transparente, ao invés de revelarem o que se supõe escondido, propõem um novo velamento, o próprio enigma que é a imagem ser imagem, o seu próprio fenómeno aparecente. O que perturba, o que fascina – é o que existe enquanto visibilidade. Porque existe, ponto. E, existindo, nunca se fecha, nunca se elide.

E o efeito de um poema, a manifestar-se, existe e depois resiste, porque conseguimos ainda reter um verso na memória ou, de modo mais difuso, menos suscetível à demonstração rápida, porque uma determinada impressão – certas imagens, certos ritmos – ainda nos desassossega. Um pouco à imagem do sorriso de Cheshire, o gato da Alice: quando o seu corpo desaparece, perdura ainda por instantes o disco lunar dos seus dentes, essa marca vestigial em jeito de assombração alucinada.

 Marca, vestígio, lastro: este léxico pontua de forma insistente o livro de Fábio Neves Marcelino, “Canto Irregular” (Averno, 2018). Há outras variantes: as marcas ou linhas – «Uma linha no chão / marca a minha idade» (p. 8); as sobras – «Sobra manhã / na noite de Antero» (p. 25); os traços ou rastos – «Os nomes / traçam um rasto / perdido» (p. 28). Admite o poeta em jeito de condensação não só temática, mas também programática: «O entulho que suja / é o que faz o poema» (p. 24). Estes dois versos parecem, aliás, desdobrar pleonasticamente o título do livro. “Canto Irregular”: como quem justapõe, por um lado, o que a poesia retém de edificante, a raiar o vetusto (e a já citada referência ao poeta Antero de Quental subscreve esse aparente anacronismo) e a vocação musical (“o bater do tambor”, “um batuque” que “diz presente”); por outro lado, o que é deixado em contragolpe, o que é atrito e dissensão num poema, como quem improvisa (ou se deixa improvisar). Por outras palavras: canto irregular é o que, na sua imediaticidade, tem a propensão para se fazer ouvir e se tornar reconhecível, ao mesmo tempo que age por descontinuidades e por interrupções que ameaçam a totalização desse canto, deixando-o assim na obscuridade. Mas é nessa tensão que se constituem os lugares e os tempos desta poesia, como quem crê secretamente na existência de sentido (ou que descobre esse sentido nas contingências da vida): “e como uma canção irregular / amamo-nos na pureza da derrota” (p. 14).

A leitura do primeiro poema convoca uma iminente propensão visual, como quem observa um espaço e, estando este vazio, mais desarmante se afigura o olhar e o pensamento que aí acontece: “Entre a prosa e a poesia / há o espaço entre / a erva que cresce / e / o orvalho” (p. 7). A condição espacial do texto joga, portanto, com o que o circunda: espaço em branco, mancha gráfica, vazio – e silêncio, tudo o que resta depois de se sacudir “os excessos / da vida” (p. 20). Entre a prosa e a poesia, entre a erva e o orvalho, “o espaço” – o lugar entre, o vazio intersticial, o momento de suspensão que torna mais aceso o ato de não decidir, de não tomar partido, de deixar em aberto o que resiste à mera comunicação. E daí que prevaleça em Canto Irregular essa impressão que foge à unidade. Daí o intervalo, a falha, a fissura, tudo o que, demarcando, não aponta para o que fica do lado de cada margem, mas para a materialidade constitutiva do que opera essa demarcação, o fulgor inesperado dessa rutura.

Mesmo a deriva mais aproximadamente autorretratística, aquela que, em sentido lato, aspira à unidade, à ficção psicológica de um absoluto (a possibilidade de se dizer “eu” sem que o chão sob os pés se desfaça), reconhece a falência do espelho em devolver qualquer coisa parecida com a de uma imagem integral: “Nunca fui senão uma ponte quebrada / à espera de um dia inteiro” (p. 9). Não se trata, porém, de querer responder em eco às vozes mais comuns da crise das referências, de um certo tique pós-moderno que tomaria a falha, a linha ou a perda como sintomas de algum desnorte ontológico, da famigerada crise do sujeito, com a paisagem por trás toda desfeita em ruínas. Não há um único verso do qual se extraia o bocejo, o desalento ou o corpo inerte diante o fracasso que é sobreviver à passagem dos dias, numa “cidade / órfã de outras primaveras”, entre “templos de néon” (p. 26).

Pelo contrário, desnegativiza-se o que faria supor essa sensação de fracasso: porque se, de um lado, o poema nomeia [o] desânimo / que vai erguendo muros de pedra e betão”, restando da vida, ou da sua memória, “as sombras de / fotografias espalhadas pela casa” (o lastro da imagem, o seu negativo, o que nela é ainda mais insubstancial do que a consciência do tempo que não mais se revive), do outro lado, o mesmo poema termina com um golpe exultante: “Surge um milagre: o tremer do chão / não interrompe o voo do pássaro” (p. 22).

O desnorte, se é ontológico, não deixa de ser feliz. As lágrimas, um momento de aprendizagem que é recebido sem trauma: “No rosto de Jack Kerouac / aprendi a chorar / a celebração da ruína” (p. 12); “Tenho a queda como casa, / condição perigosa para quem não se ergue” (p. 13). E este poema, um simples dístico que diz o essencial sobre a deflagração da beleza: “Uma fresta na parede / pode iluminar uma casa inteira” (p. 23).

“Canto Irregular” é um pequeno e discreto livro de poesia. Nele se pressente o dessoramento dos versos, o trabalho profundo de quem se debruça sobre as imagens para delas extrair a naturalidade do fulgor, a violência de um instante, ao mesmo tempo que se capta a natureza acidental das coisas, das circunstâncias. Um trabalho de depuração que é mais evidente quanto mais discreto se faz, às arrecuas de toda a afetação e ganga enfáticas com as quais se faz, também, muito versilibrismo de agora e de sempre. Perto do fim, lê-se: “O poema / não permite desconversas / caleja as mãos / surge dos cantos / de choros antigos” (p. 30). Reclama-se por uma silenciosa ancestralidade, a história que fica é a que vem oblíqua, “dos cantos”. Voltamos sem querer ao início – a poesia invocando a sua raiz musical –, mas também é possível jogar aqui com a homonímia dos termos: os cantos, os ângulos, as esquinas da história. Aquilo que, na sua completa inoperância, poderia ter ficado irremediavelmente esquecido. Consequência mais óbvia: um poema a menos. Alarmes? Nenhuns. Mas o que fica, o poema que existe – essa é uma intensidade da qual se espera, do leitor, o atrevimento responsável, o lance curioso, e, na mesma dose, uma aproximação ao silêncio, uma recusa à tagarelice, isso em que se tornou o nosso modo involuntário de habitar um mundo em comum.

Insista-se: “O poema / não permite desconversas”. Desconversas: análises, hermenêutica, os palpites da praxe que, na busca por descortinar os pressupostos sentimentos de um sujeito lírico, como nos testes em contexto escolar, fazem menos pela poesia do que pelo desdém dos que são obrigados a levar com ela nas salas de aula. Desconversar é, igualmente, o modo como se cumpre aqui este texto. E um poema que trava o passo às desconversas é o mesmo que sujeita a crítica literária a assumir a sua condição supérflua e parasitária, a sua cumplicidade no ruído de fundo. No mínimo, que o que se diga sobre um poema seja feito da mesma matéria de um rumor, de “um pássaro em voo rasante”, de tudo o que, na sua absoluta inutilidade, resiste sem esforço, à margem do nosso desejo. Um rumor que diga apenas: este livro existe. E que na afirmatividade da sua existência (o maior enigma de todos: o enigma do que existe, a visibilidade do visível) sustente o que há de retórico numa pergunta, ou seja, o facto de, apesar de retórica, uma questão se endereçar sempre a alguém, a um porvir, a todo o leitor em potência: “Não laves / o que arde // não durmas // planta uma árvore / no meu sopro / e seremos testemunhas / da colheita” (p. 19).

 Este livro existe, portanto. Existe na sua obscuridade, como quem espera mas sem esperar nada, sem transitividade, sem recompensa: “Tempos houve em que esperei a luz que precede o trovão / como quem pára para escutar a idade” (p. 15). E é só.