Philip Nitschke, o primeiro médico a praticar eutanásia. ‘As pessoas hoje são pressionadas para viver’

Fundador da organização suíça que ajudou o cientista australiano David Goodall a morrer diz ter cerca de 100 membros em Portugal. E rejeita que haja um aproveitamento financeiro neste tipo de entidades pró-eutanásia.  

Philip Nitschke foi o primeiro médico a nível mundial a praticar um ato de eutanásia e acompanhou recentemente o cientista australiano David Goodall, de 104 anos, que viajou até à Suíça para pôr fim à sua vida. Seguiu o debate em Portugal em torno da morte assistida e acredita que a despenalização fará o seu caminho, embora esteja tudo a levar mais tempo do que imaginaria. Um dos problemas, acredita, é a excessiva ‘medicalização’ dos modelos que têm vindo a ser legalizados. Em 2015, afastou-se oficialmente da carreira médica e dedicou-se à organização pró-eutanásia Exit, que fundou em 1997. Conta com cerca de 100 membros em Portugal, revelou em entrevista ao SOL.

O Parlamento português rejeitou esta semana quatro projetos-lei para legalizar a eutanásia e ainda são poucos os países que despenalizaram esta prática. Projetava um cenário diferente quando praticou o primeiro ato de eutanásia na Austrália em 1996?

Já fez 20 anos. A Austrália foi o primeiro país a legalizar a eutanásia mas a lei só durou oito meses. Quatro dos meus doentes levaram uma injeção letal e morreram em 1996. A Holanda legalizaria a eutanásia em 2001. Se esperava uma diferente evolução? Tem havido alterações em todo o mundo. Nos últimos anos vimos a despenalização no Canadá, na Califórnia… penso que Portugal também o verá. Mas quer dizer, mesmo no meu país, passados 22 anos, hoje apenas um estado (Victoria) o permite. Fico um pouco surpreendido com o tempo que tem levado.

Fundou a Exit International, uma organização pró-eutanásia com membros em todo o mundo. Como descreve o vosso trabalho? 

Como tem demorado tanto tempo a alterar a legislação e como muitas vezes, quando isso acontece, a lei é bastante restritiva – é só para pessoas muito doentes, doentes terminais – a nossa abordagem tem sido garantir que o resto das pessoas consegue perceber a que medicamentos pode ter acesso e todo o processo. Nos países onde a lei não mudou, estas pessoas só querem ser capazes de pôr fim às suas vidas de forma pacífica e sabendo o que estão a fazer. Tornamos essa informação o mais acessível possível para que as pessoas que estão fartas de esperar que as leis mudem possam ter acesso exatamente aos mesmos medicamentos que são usados nos países onde a morte assistida é legal.

Um dos casos mais controversos recentemente foi o do cientista australiano David Goodall, de 104 anos, que viajou até à Suíça, onde teve o apoio da Exit para morrer com uma injeção letal. Goodall não tinha uma doença terminal, apenas não queria continuar a viver. Onde é que coloca a fronteira e como vê o receio de que haja uma rampa deslizante?

A nossa posição na Exit sobre isso é simples. Desde que a pessoa seja um adulto com discernimento, portanto um adulto e não uma criança e uma pessoa consciente, que sabe o que está a fazer, então essa pessoa deve ter o direito a pôr fim à sua vida. As razões são com a pessoa, não se trata de vir alguém julgar essas razões. Se a pessoa deseja morrer deve ter essa opção. Na nossa organização temos um limite mínimo de idade de 50 anos. Acima dessa idade, se a pessoa quer morrer e está nas posse das capacidades mentais, seja qualquer for a razão, nós ajudamo-la.

A maioria dos suicídios são levados a cabo por pessoas com perturbação depressiva. Alguns estudos apontam para mais de 90% dos casos. Como garantem que quem vos procura está na posse das suas faculdades mentais e não está deprimido?

A ideia de que o suicídio está invariavelmente ligado a doença psiquiátrica é um argumento que tem escalado entre os médicos mas não existe uma visão clara sobre este assunto. A questão do suicídio racional continua a ser debatida entre os médicos. Há médicos que pensam que todas as pessoas que se suicidam são doentes mentais. Um exemplo óbvio  que demonstra que esta é uma ideia incorreta são as pessoas que diariamente se fazem explodir, os bombistas suicidas. Não são doentes mentais. Podem não ser pessoas boas, mas não são doentes mentais. O argumento de que haver um suicídio significa que a pessoa estava deprimida e mal a nível mental não é algo que apoiemos na Exit. Obviamente que questionamos o estado mental das pessoas, mas entendemos sobretudo que as pessoas devem estar informadas e algumas ficam muito mais felizes só por ter esta opção.  

Falou dos bombistas suicidas. Mas, mesmo nesses casos, não pode haver também um distúrbio mental?  

O que me preocupa essencialmente é que se use o argumento para dizer que não é possível haver uma decisão racional e que as pessoas precisam antes de tratamento mental. A maioria das pessoas que quer morrer tem essa vontade devido a doenças graves e sofrimento, mas cada vez mais vemos pessoas como David Goodall que não estão a sofrer, mas tomam a decisão racional de morrer. Ele é também um exemplo de decisão racional. Podia ter importado a medicação e falámos sobre isso. Mas disse-nos que queria ir à Suíça, onde o processo é legal, onde não seria necessário infringir a lei.

Na Suíça a eutanásia não é legal, a legislação permite apenas o suicídio assistido.

Sim, o doente tem de ser capaz de iniciar o processo por si. O médico coloca a agulha na veia e coloca a medicação na seringa, mas o doente tem de iniciar o processo.

Um psiquiatra que entrevistámos nos últimos dias defendia que esse processo, ao mimetizar o suicídio, era reprovável. Que deontologicamente seria mais aceitável legislar a eutanásia em circunstância específicas, porque de outra forma há uma espécie de cobardia médica. Preferia que a eutanásia fosse legal na Suíça?

Não penso que os médicos tenham de estar envolvidos. A decisão de morrer devia estar apenas nas mãos da pessoa. Não é preciso um médico. O papel do médico neste processo é bastante questionável. Nesta questão do suicídio assistido é basicamente garantir se a pessoa está na posse das suas faculdades mentais, verificar se a pessoa tem discernimento ou não. Na Suíça esse é o único papel do médico, decidir se David Goodall era racional. Se ele tivesse optado por tomar medicação oral, o que podia ter feito, não precisava de ter feito uma injeção. Não teria havido necessidade de um médico envolvido. Muitos dos modelos que têm vindo a ser legislados, tal como os que Portugal estava agora a debater, colocam os médicos no centro do palco: são modelos muito medicalizados onde as pessoas têm de convencer geralmente um grupo de médicos para terem ajuda para morrer. Este é o modelo que tem sido implementado em quase todo o lado. Aqui (Suíça, onde a Exit está sediada) e na Holanda, o que está a ser discutido é se as pessoas devem ter acesso à medicação enquanto um direito e não porque estão doentes. Se querem, têm acesso. É uma abordagem diferente e é o que apoiamos.

Um dos argumentos contra a despenalização da eutanásia é se esta escolha poderá ser livre num país onde faltam cuidados paliativos, onde grande parte da população idosa vive em condições de pobreza, exclusão e isolamento. Pode haver até uma tentativa de parte da sociedade se descartar dos mais velhos. Como vê estes receios?

Esta ideia de que legalizando haverá pressões sociais para morrer, o que vemos hoje é quase o contrário: as pessoas são pressionadas para viver. Tenho sistematicamente membros que me dizem que o filho ou a filha insistam que faça mais quimioterapia e não querem, que são forçados a viver e a tentar novos tratamentos. A ideia de pressões funciona para os dois lados. A ideia da pobreza e de que falta de acesso a bons cuidados de saúde e tratamentos paliativos em particular e por isso não se deve fazer nada… Acho que isto são questões que muitas vezes não serão resolvidas e são usadas simplesmente como argumento por parte de quem está contra a mudança. A ideia é que até resolvermos a desigualdade não se deve permitir a eutanásia e suicídio assistido. Não perco tempo com esse argumento porque só serve para não se fazer nada. Não se tem conseguido resolver a pobreza, pelo menos até ao momento, e entretanto isso é usado como argumento para as pessoas continuarem a morrer.

Alguma vez se arrependeu de ter ajudado alguma pessoa a pôr fim à sua vida?

Não. Sobretudo naqueles primeiros casos em que vi os doentes a morrerem com as mulheres a segurarem-lhes as mãos, senti-me bem por garantir que aquelas pessoas  que estavam  muito doentes pudessem partir num ambiente muito afetivo. E vi o alívio nos familiares. Nos últimos anos houve situações em que as pessoas tiveram acesso a medicamentos e os tomaram e eu gostava que não o tivessem feito, mas na maioria das vezes, e muitas vezes isso acontece com os mais velhos, quando conseguem ter acesso à medicação sentem-se muito mais confortados por saberem que têm aquela opção.

Teve contacto recentemente com pessoas em Portugal?

Sim.

Quantos membros portugueses há atualmente na Exit?

Tivemos um workshop em Lisboa há cerca de cinco anos. Não sei o número exato, mas diria que está na casa de uma centena. O livro que publicamos anualmente não tem tradução portuguesa mas tem agora uma edição espanhola e estamos a pensar fazer um workshop em Espanha e visitar também Portugal, dado até o debate recente. O que posso dizer é que há constantemente emails de Portugal a pedir informações.

São emails de pessoas doentes, idosos?

Por vezes são pessoas mais velhas, por vezes são pessoas com doença. Geralmente pretendem obter informação sobre quais são as opções e os medicamentos a que podem ter acesso.

Em 2015 queimou a sua cédula de médico depois de várias controvérsias.

Com o tempo percebi que muitas pessoas queriam morrer não por razões médicas, havia pessoas que queriam morrer por exemplo  porque o companheiro tinha morrido e continuei a apoiá-las. O Medical Board of Australia (regulador da profissão na Austrália) entendeu a certa altura que eu era um perigo para o público, retiraram-me a cédula, consegui recuperá-la em tribunal depois de gastar muito dinheiro. Como o diferendo continuou e me disseram que ou parava ou não podia continuar a ser médico, decidi queimar o meu registo profissional.

E continuou a ser censurado?

Bom, neste momento não. Quer dizer, vivo na Holanda e o debate aqui não tem nada a ver. É um ambiente mais aberto para discutir estas questões do que era a Austrália.

Na Holanda é legal a eutanásia em menores de idade, algo que não apoiam na Exit.

A questão das crianças é uma situação complexa. Com certeza que se houver uma situação com uma doença terminal, pode ser algo benévolo, mas será algo sempre raro. A nossa política tem a ver com a decisão de adultos racionais. Claro que podíamos falar de alguém com 18 anos… dá que pensar que enquanto sociedade deixamos que uma pessoa de 18 anos vá para um cenário de guerra matar pessoas mas não toleramos que possa decidir sobre a sua vida.

Chamam-lhe ‘dr. Morte’. Isso incomoda-o?

As pessoas estão sempre a chamar nomes. Este é um assunto social muito importante, talvez um dos mais importantes da década e quando as pessoas adotam posições fortes há sempre algo desagradável que se pode dizer. Se uma pessoa ficasse aborrecida sempre que lhe chamam um nome não fazia nada. Não é algo que me preocupe, às vezes é uma forma de introduzir algum humor na discussão do tema.

A Exit cobra aos membros uma anuidade de 100 dólares ou, em alternativa, um pagamento vitalício de mil dólares, que dá acesso aos tais manuais e fóruns. O fundador da associação também pró-eutanásia na Suíça Dignitas está a ser acusado de explorar financeiramente doentes. Porquê estes valores e como vê as suspeitas de que este é sobretudo um negócio?

Ludwig Minelli trabalhou incansavelmente para erguer a Dignitas e há pessoas que dedicam a sua vida a tentar destruir isso. Conseguimos publicar a informação porque temos estas receitas e o que posso dizer é que recebo um salário muito mais modesto comparado com o que teria se o meu trabalho fosse prescrever penicilina.