Da vida e do sofrimento

Carlos Encarnação Tanta injustiça, tanto drama, tanto sofrimento a vida encerra. Tanto que nos é difícil escolher a prioridade. Sabemos todos que os cuidados médicos estão desigualmente distribuídos pelo território. Hoje, que tanto se fala e defende a reconsideração do interior, valia a pena prestar atenção, neste domínio que seja,  ao seu isolamento, à escassez…

Carlos Encarnação

Tanta injustiça, tanto drama, tanto sofrimento a vida encerra.

Tanto que nos é difícil escolher a prioridade.

Sabemos todos que os cuidados médicos estão desigualmente distribuídos pelo território. Hoje, que tanto se fala e defende a reconsideração do interior, valia a pena prestar atenção, neste domínio que seja,  ao seu isolamento, à escassez de recursos, ao abandono.

Ou, valia a pena prestar atenção ao modo como os encargos sobem com a distância e a penosidade com que os abandonados da sorte conseguem eventualmente obter soluções.

Ou valia a pena tentar perceber como a doença se adapta à inexistência local do serviço de saúde, como ele não é universal na prática.

Num degrau acima conviria recordar que, mesmo com centros de saúde acessíveis, a muitos, a tantos, não foi atribuído ainda médico de família.

E noutro recordar como a realização de consultas ou exames ou cirurgias atinge tempos de realização escandalosos.

Ou, quando existindo tratamento, não há dinheiro no Estado ou nas pessoas.

Ou, quando o tratamento já só se pode realizar de forma paliativa, a inexistência de respostas ou a distância a que se encontram.

Em todas estas  situações sentimos que morremos um pouco, que dá vontade de desistir.

Mas, no cimo desta pirâmide está a resultante da situação terminal que se arrasta, da total diminuição das capacidades, do sofrimento atroz, da dor insuportável.

E, em relação a ela, do direito a procurar a morte por si ou por outrem como forma de abreviar o fim e o conflito com a proteção do direito fundamental à vida.

O conjunto das considerações produzidas demonstra o quanto falta fazer, a medida da insatisfação da nossa consciência, o trabalho que nos espera para permitir a vida e a morte com dignidade.

A discussão sobre a eutanásia vai requerer uma atenção e um compromisso geral quanto a isto, não uma iniciativa isolada.

Retenho daquela, não as querelas políticas vulgares, mas dois pontos essenciais.

A eutanásia não é o progressismo contra o  conservadorismo, não é a direita contra  a esquerda, não são os bons contra os maus.

Durante muitos e muitos anos o ato de provocar a morte ou de a produzir foi combatido em nome de um conceito fundamental e de uma defesa contra  o aproveitamento de um qualquer poder.

Foi isto mesmo que as Constituições modernas incluíram.

Trata-se de uma questão civilizacional.

Em recente escrito, o Dr. Jorge Miranda caracterizou bem o problema.

Ao longo da história o direito de matar foi procurado em alguns  Estados como o exercício perverso da bondade que livrava a sociedade dos inconvenientes, ou os diferentes do seu mal, ou da eliminação do pecado original da doença inabilitante.

A nova discussão institui um problema novo. Dúplice, todavia.

O cidadão que quer a morte e os executores autorizados.

Portanto, uma alteração substancial dos nossos quadros de valores.

Cada um por si, dizia Saramago.

A Constituição por todos, responderia eu.

Aquela Constituição que admite a passividade do deixar morrer em paz, a supressão da dor, o acompanhamento digno.

Aquela Constituição que quisemos, votámos e juramos defender.

De resto, ter coração não é monopólio.