A batalha pelo esquecimento…

O único ‘frisson’  ficou por conta de Costa, ao prevenir que não meteu ‘os papéis para a reforma’ 

Anestesiado o país com a ‘geringonça’ – essa invenção de recurso para um derrotado nas urnas se tornar primeiro-ministro -, António Costa utilizou a mesma receita no Congresso, cuja principal batalha foi a do esquecimento.

Os socialistas conseguiram passar uma esponja pelo passado incómodo, desde a renúncia ao partido do ex-‘menino de ouro’ José Sócrates, a contas com a Justiça, até Manuel Pinho, um andarilho por vocação, com queda para ser ‘patrocinado’ nas suas derivas pelo mundo, e suspeito de recebimentos indevidos enquanto ministro.

Se houve um ‘eclipse’ em relação aos últimos acontecimentos mediatizados, então a memória mais longínqua perdeu-se nas brumas do tempo. Amnésia total.

Quem se lembra já de evocar as responsabilidades de governos socialistas nos desvarios megalómanos que arruinaram a Fazenda e precipitaram o país nas mãos da troika, sujeitando-o a uma ‘dieta’ prolongada? Só um herege.

E sobre o pré-colapso do banco público, que acumulou pesados prejuízos a resgatar pelos contribuintes, e cuja lista de grandes devedores não foi até hoje divulgada graças aos bons ofícios das esquerdas coligadas? Silêncio no Congresso. 

Tão-pouco alguém se atreveu a questionar investimentos públicos ruinosos – desde autoestradas quase sem tráfego ao aeroporto de Beja sem aviões – ou as volumosas cativações, afetando em particular o Serviço Nacional de Saúde. Prestou-se homenagem a António Arnaut e a uma das suas últimas vontades – «Ó Costa, aguenta lá o SNS» – como recordou o líder do PS na Batalha. E pouco mais, além de piedosas vulgaridades.

Mas a homenagem ao ‘histórico’ serviu de enquadramento e de pretexto para António Costa afastar as ‘vergonhas’ e declarar, urbi et orbi, que «chegamos a este Congresso orgulhosos da nossa história». 

Foi o bastante para embevecer Francisco Assis (que ‘atirou a toalha ao chão’) e para satisfazer os ‘socráticos’ novamente no Governo. Até Ana Gomes, que prometera «partir a loiça», foi uma sombra de si própria, limitando-se à vaga ladainha de que «errámos deixando que o pântano atolasse o país», sem nomear ninguém. Não partiu nem um prato.

Afinal, o único ‘frisson’ ficou por conta de Costa, ao prevenir que não meteu «os papéis para a reforma» – assim travando qualquer veleidade de ‘delfins’ apostados em dar nas vistas, já com ‘sede ao pote’. 

Confirmou-se o que há muito se pressentia. António Costa é avesso a reformas, preferindo as reversões e cativações – além do agravamento dos impostos indiretos – como cosmética para convencer os incautos da boa saúde das Finanças e de que têm mais dinheiro no bolso. 

Sabe-se que os congressos partidários se transformaram em celebrações litúrgicas, onde sobrevive a linguagem de comício para deslumbre dos crentes.

Na Batalha, por isso, prevaleceram os exorcismos sobre os demónios que perseguem o PS, enquanto se assistiu a um ‘irritante’ no discurso dos principais atores, ‘limpos’ de lapsos e de culpas, com uma desfaçatez desarmante. Sentem-se blindados. 

O Congresso poderia ter sido a oportunidade para o partido se regenerar, assumindo com frontalidade os erros e graves desvios de alguns dos seus, que lhe mancham a história, reconhecendo os progressos da Justiça no combate à corrupção, e a coragem de investigadores, procuradores e juízes, que não se deixaram intimidar. Não se ouviu uma palavra. 

Mas que importam essas ‘nódoas’ quando Ferro Rodrigues subiu ao palco e afirmou, sem se rir, que «o combate à corrupção está no ADN do PS»? Ou quando Francisco Assis, ex-adversário da ‘geringonça’, se apresentou rendido ao desempenho de Costa, por ter «anestesiado» o BE e o PCP? 

Aliviado – e lembrando que não está «indisponível» para figurar nas listas às próximas europeias -, Assis antecipou-se, não fosse alguém omiti-lo e comprometer as mordomias a que se habituou no circuito cosmopolita entre Estrasburgo e Bruxelas. 

Decerto pôs os olhos no seu colega ‘justiceiro’ Marinho e Pinto, que confessou, nostálgico, sentir-se como um iogurte cujo «prazo está a chegar ao fim» – a menos, talvez, que a sua antiga subalterna na Ordem, Elina Fraga, hoje ‘reciclada’ para vice-presidente do PSD, ainda o converta à social-democracia… 

O Congresso foi um fait-divers no calendário político, onde não couberam a penitência nem projetos para o futuro, exceto o de ganhar as legislativas, de preferência com maioria absoluta.

Perdeu-se o rasto dos desmandos cometidos e ninguém se repetiu «envergonhado». O PS de António Costa voltou a estar «orgulhoso» dos passados – deduzidos, criteriosamente, os sarilhos com a Justiça, as bancarrotas e outras miudezas. No mais, a paisagem é cor-de-rosa… 

Em tempo: a eutanásia foi chumbada. Ganhou a vida. À tangente…