Uma casa para habitar Jorge de Sena – 40 anos depois da morte do autor

Há casas para todos os gostos. E desgostos. E sobre isto nos falaria o Minotauro, esse apátrida junto de quem Jorge de Sena se imaginou a passar a reforma, tomando café em paz, longe de hipocrisias e da douta acumulação cultural. Não chegou sequer a velhice. Morreu, bem longe de Creta, a 4 de Junho…

Em busca de imagem para associar a uma obra de tantos compartimentos, intimamente ligados, e algumas adjacências, fixámo-nos na figuração da casa, ajustada à materialidade da sua visão do mundo, reflectida num todo criativo que o termo “construção” ajudaria certamente a descrever. Jorge de Sena haveria de preferir – e por boas razões – um outro paralelo, bem mais elaborado, talvez uma figuração com linhas menos rectas, a multiplicarem-se dialecticamente; algo capaz de causar uma autêntica metanóia no mortal, de maneira a poder falar-se no início de uma nova era na história da poesia de uma época onde muitos se perguntavam já: e depois de Fernando Pessoa? Vale a pena recordar que existem casas para todos os gostos. E desgostos. E sobre isto nos falaria o Minotauro, esse apátrida junto de quem o poeta se via a passar a reforma, tomando café em paz.   

Invulgarmente espaçosa, alicerçada numa vasta formação cultural – da literatura às artes plásticas, do teatro e do cinema à música, da história e das ciências à filosofia –, feita do barro tenso que é a escrita de Jorge de Sena, está longe de ser uma casa de fácil acesso, a avaliar desde logo pelas cercanias. Os prefácios e posfácios que a rodeiam, e que dizia inserir nos seus livros para compensar a desatenção da crítica ou até “para dizer o que já desesperara de que ela alguma vez dissesse”, são, mais do que uma saudação ao leitor, uma selecção de leitores. Numa nota introdutória a Antigas e Novas Andanças do Demónio (que logo esclarece não ser um dos “famosos prefácios do autor”), Sena, vincando a sua condição de exilado físico, observa que, “simbolicamente, os prefácios são uma das formas de o autor afirmar aquela presença que os outros mostram ao apresentar os seus cumprimentos ou assinar o respeitoso ponto”.

Se ultrapassarmos as cercanias, avançamos para uma casa que se escreve com uma grande diversidade de registos – o mais rigoroso metaforismo ou a mais complexa especulação discursiva, a mais directa rudeza, um desbragamento desassombrado – e onde coexistem o clássico, o moderno e a vanguarda; o excesso e a disciplina. “Aviso de Porta de Livraria” é talvez o mais conhecido limiar desta casa: “[…] De amor e de poesia e de ter pátria/  aqui se trata: que a ralé não passe/ este limiar sagrado e não se atreva / a encher de ratos este espaço livre / onde se morre em dignidade humana/ a dor de haver nascido em Portugal/ sem mais  remédio que trazê-lo n’alma” (Exorcismos).

Quando, em 1942, era lançada a primeira pedra, a colectânea Perseguição, a que se seguiriam Coroa da Terra (1946) e Pedra Filosofal (1950), já a crítica a dizia um lugar difícil, obscuro e por vezes mesmo impenetrável. Houve até quem tentasse compará-la a catedrais góticas, embora ela não emergisse das trevas a que a associavam. Hermetismo, cerebralismo, intelectualismo é a tríade que há-de perseguir caninamente Jorge de Sena, geração após geração. “Não é propriamente” – observava num poema de Visão Perpétua, referindo-se à crítica – “que eu seja a caravana/ e aquela tropa os cães das gerações/ Oh não. Nem eu camelo, nem eles só cães”

Com uma arquitectura complexa, capaz de articular intimamente a consciência clássica da construção e a ousadia da transgressão, talvez esta casa até perturbasse menos pelo que era, do que pelo que não era. Não era um lar novo, fresco e matinal onde não bate uma sombra desiludida e tudo é paixão concentrada, calmaria e aves contentes. Mais interessada em indagar a paisagem humana, sempre dispensou tanto a colaboração da natureza como um lirismo objectivo: “Que caçarei da natureza mais/ que humanidade em ruas de cidade?» – assim conclui um soneto de Visão Perpétua.

E também não se desenhava uma casa caiada, asseadinha, num cenário tipicamente português, abrigando pretéritos saudosismos – a pequena casa portuguesa, com certeza. Espaço de cruzamento de culturas das mais desvairadas latitudes, objecto de pesquisa poética, revendo mitos e propondo contra-mitos (e o que é o Indesejado (António, Rei)?), não pretendia ser a expressão da alma do povo nem a guardiã da moral, dos bons e brandos costumes. Bastará lembrar a sequência poética As Evidências, apreendida temporariamente pela PIDE sob a acusação de subversão e pornografia.

Perturbador é que também não fosse esta uma casa geminada, voltada para “ismos”, nem mesmo para o Surrealismo. Desmistificando, de resto sobre o seu próprio exemplo, a ultrapassada concepção da originalidade absoluta, sempre fez questão Jorge de Sena de se descolar das afinidades que a crítica lhe descobria. Situada na grande tradição do lirismo especulativo (Camões, Antero, Pessoa), os seus primeiros livros de poesia logo representam um confronto divergente com todas as poéticas do Modernismo.

A poesia de Jorge de Sena, e sobretudo a que se situa em zonas posteriores, vinha mostrar que o poema podia ser um veículo para exprimir opiniões. Todos os grandes poetas nos dão, de um modo ou de outro, a sua visão do mundo. Mas se lermos a poesia de Sena ficaremos a saber o que pensa sobre uma infinidade de coisas, das mais complexas às mais triviais: da ressurreição (“um negócio individual, requerendo vítima, sepulcro emprestado”), das histórias da literatura, dos estudiosos)e até dos actores dos filmes pornográficos.

Dizer que Camões é uma presença importante desta casa é uma afirmação que o título “Trinta Anos de Camões 1948-1978”, exprimindo a permanência, a intensidade e o fascínio por essa figura ímpar, se apressa a revelar insuficiente.

“Fernando Pessoa & Cª Heterónima”, o volume que reúne os estudos pessoanos, preenchem também o espaço ensaístico desta casa, mas sem que possa dizer-se que existisse uma relação íntima, de casa e pucarinho, até porque, muito embora a poesia de Sena absorva o fingimento pessoano para o transformar numa poética do testemunho, o poeta dos heterónimos é visto sempre com admirativa distância, num plano de não conformidade ideológica. Deu-se o primeiro encontro quando Sena, ainda muito jovem e sem disso se aperceber, entrou na sala de visitas da sua tia-avó. A vida dá muitas voltas, tantas que Sena virá a ter como discípulo o próprio Pessoa, “de quem já se gastou” – lembrava, depois de tantos estudos que lhe dedicou e em tom visivelmente irritado – “o desafinado disco de me acharem discípulo – quando ele é que o meu, pelo muito que, criticamente, o expliquei por mim.”

Presença misteriosa nesta obra é a da própria Poesia. Recordemos, não a primeira, mas a segunda visita, talvez melhor, a “segunda aparição” a Jorge, o protagonista-narrador do romance Sinais de Fogo. Um tal criador, que também se chama Jorge, obriga-nos a saltar de casa em casa. Estamos já na casa paterna da personagem, exactamente no espaço íntimo do seu quarto, onde encontra sem saber como nem porquê registado “num papel que não sabia ter procurado” “palavras que não sentira ter escrito”. A voz sibilina da poesia, sentida como algo de “terrível”, haveria de regressar para transformar para sempre a sua vida.

E porque o poeta Jorge de Sena era também um polemista cultural e um escritor com uma insaciável sede de reconhecimento que dizia negarem-lhe, nesta casa também há espaço para a “literocambada”, quando não para “cambada toda”, tratada no tom desabrido que é tantas vezes o seu: “que vão/ para o inferno que lhes cumpre em sorte./ Mas não se julguem donos de uma terra/ de mais destino e história que apará-los.”

 Uma figura que em graus de tensão variável percorre toda a obra de Sena é a do diabo. É um habitante com muita substância, mas sem presença plasticamente viva, como notou Eduardo Lourenço, e que retira prazer da observação das movimentações humanas. É também o caso de O Físico Prodigioso, um diabo que não cessa de amar, figura que recusa o limite de um nome, que não é, está sempre sendo, e que um barrete diabólico torna invisível e dá poderes. Uma novela ímpar, que poderíamos situar nos andares superiores da casa,  onde o leitor é vítima da diablerie de uma ficção que, concentrando a problemática do duplo, da sobreposição e dos contrários, da errância é irredutível a sentidos unos.

Uma casa, em princípio, será um reflexo mais ou menos fiel do “eu” que nela habita. A primeira impressão que o visitante recebe ao entrar na casa de Sena, depois de uma recepção nem sempre calorosa, é a de que se encontra num espaço de uma trama de referências poéticas e culturais e de circunstâncias biográficas: “Nascido em Portugal, de pais portugueses,/ e pai de brasileiros no Brasil/ serei talvez norte-americano quando lá estiver/Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,/
se usam e se deitam fora […]”.

O Exame do mobiliário da casa é um bom campo de observação para o conhecimento da obra de Sena. Lá encontramos uma mesa, que é metáfora do mundo: “sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro/ e principio a escrever como se escrever fosse respirar”; uma célebre cadeira, “A cadeira amarela, de Van Gogh”, visada pelo poeta, menos como objecto do quadro do pintor holandês, e mais como representação simbólica da humanidade. Encontramo-la no livro que mais marcas terá deixado na poesia portuguesa contemporânea, abrindo caminho a um diálogo entre as diversas áreas da criação artística: “Metamorfoses”, (1963).

Hoje, 40 anos depois da morte de Jorge de Sena, entretanto com boa fortuna crítica, não fazem já sentido as seguintes observações de Eugénio Lisboa, datadas de 1982: “Não há um único texto que tenha sequer tentado de modo convincente abrir a fechadura da primeira porta do rés-do-chão deste edifício grandioso e variado que é a poesia de Jorge de Sena.” – património fundamental da história e da cultura portuguesa do século XX.