Hospital de Bonecas. Onde se recuperam histórias desconhecidas

No coração de Lisboa, longe das novas tecnologias, há um lugar onde o tempo parece não avançar. O Hospital de Bonecas, que nasceu na primeira metade do séc. XIX, é hoje um negócio centenário que pertence à família Cutileiro

Para entender como começou este grande centro de recuperação de brinquedos é necessário recuar ao ano de 1830, em que a atual Praça da Figueira, em Lisboa, era ocupada por um grande mercado ao ar livre.

No meio do comércio a céu aberto havia uma velhinha que vendia ervas secas, mas que tinha muito jeito de mãos. De vez em quando fazia umas bonecas de pano e as pessoas habituaram-se à ideia, que acabou por se tornar popular.
São estes os primórdios do que viria a ser uma das primeiras unidades hospitalares dedicada exclusivamente a pacientes de plástico, porcelana, marfinete ou outros materiais de que são feitos os bonecos de brincar ou de coleção.
O negócio, que ainda hoje se mantém no mesmo local, foi passando de geração em geração. Manuela Cutileiro, a atual diretora do hospital, conta que os primeiros donos eram amigos dos seus avós e que a paixão pelo restauro foi algo natural que surgiu na sua família.

As instalações imitam um hospital de verdade: a entrada da loja de brinquedos faz logo lembrar a receção de uma clínica. A diferença é que está decorada com porcelanas, peluches e bonecos, mas os donos dos pacientes de brincar recebem uma ficha que se equipara a um formulário do médico. É onde devem descrever a doença, brinca Manuela.
Após esse processo, os bonecos são levados para o hospital propriamente dito, que está situado no primeiro andar do prédio, com uma sala de espera onde aguardam o processo de recuperação.

Para além dessas instalações, o centro de restauro tem uma loja, um museu – a que Manuela prefere chamar quarto de brincar –, um espaço dedicado só às cirurgias (onde decorrem até operações plásticas) e um armário onde os bonecos que têm alta aguardam que a família os venha buscar.

Todos os doentes são identificados com uma placa no pé que corresponde ao número da cama que lhes foi atribuída no hospital. Só assim é possível acompanhar o processo de restauro e ter acesso às informações das pessoas que os deixaram.
 
Doentes há várias gerações As histórias que se poderiam ter perdido no tempo são recordadas no hospital: o mesmo boneco pode aparecer mais do que uma vez, em diferentes gerações de donos. Manuela, que também é a clínica geral do hospital, assegura que é comum conhecer-se sobretudo a história do último dono do boneco. 

A médica de brinquedos confessa que, para ela, os bonecos representam sobretudo “recordação das pessoas que já não estão cá”. E o que a fascina é saber que todos eles acabam por ter, de certa forma, uma história desconhecida.
Ermelinda, uma das enfermeiras de serviço, diz que “há pessoas que tratam os bonecos melhor do que os seres humanos”. Mas no hospital não existem distinções: todos são tratados de igual forma. Os atuais serviços são muitos: ainda funcionam como ervanária, com uma clientela certa. Apostam sobretudo no restauro de bonecas antigas e atuais, constroem roupas para os brinquedos, mas também de carnaval, e manuseiam peluches, casas de bonecas ou objetos de porcelana, marfinete, madeira e outros materiais que, ainda assim, aparecem com menos frequência.

Os trabalhos são minuciosos, afirma Manuela. Chegam mesmo a demorar dias, mas o cliente é sempre informado de quanto tempo irá demorar todo o processo. A proprietária relembra que já tiveram reparações complicadas e que cada boneco é diferente, sendo o material o principal fator de distinção. “Os antigos são mais passíveis de serem restaurados, enquanto um plástico de agora é mais difícil porque é tão fraco que optamos por substituir peças.”
Como existem prazos a cumprir – sobretudo quando se trabalha para estrangeiros, que têm datas para ir embora –, as funcionárias não têm horários. Atendem os doentes sem relógio, mas com paixão. “É conforme vai surgindo, não é algo mecânico”, conta Manuela, acrescentando que o que mais gosta de fazer é inventar roupa para os bonecos. 

“Muitas vezes, os clientes trazem uma boneca muito velha e supersuja”, descreve Manuela. “Há coisas tão velhinhas que às vezes olhamos e não sabemos por que ponta pegar.” Após o restauro, parece que acabaram de sair da loja, por estrear.

Conhecidos internacionalmente, a dona já perdeu a conta das pessoas de diferentes países que procuram os serviços do icónico hospital no coração de Lisboa. Seja de França, Brasil, Alemanha, Estados Unidos, Mónaco e até Austrália, Manuela sente-se satisfeita por lhe chegarem novos modelos todos os dias, por correio ou entrega presencial.

No entanto, quem por lá passa não são só pessoas que pretendem usufruir dos serviços. Muitos são os curiosos que têm interesse em entrar nesta grande casa de brinquedos. Existem também vários jornalistas, professores e alunos que procuram o Hospital de Bonecas para fazer os seus trabalhos académicos. Prova disso são os diversos textos que estão emoldurados e preenchem as paredes das diversas salas.

Mas as visitas não param. As funcionárias garantem que têm amigos muito originais. “Temos uma facilidade de chegar a toda a gente”, justifica Manuela. 

A juntar às histórias dos bonecos há muitas pessoas que ficam na memória do hospital: um sem-abrigo encontrou uma boneca no lixo completamente desfigurada e a cheirar mal e quis deixá-la na receção do hospital – após estar nos cuidados intensivos, ganhou uma nova vida. 

Sobre o facto de tanto boneco junto facilmente lembrar alguns argumentos de filmes de terror que retratam estes inofensivos seres como assustadores, Manuela Cutileiro nunca teve qualquer assombração. “É só para fazer charme”, resume. A dona do hospital não vai atrás das modas, mas o certo é que já recebeu muitas pessoas à procura de tendências que são lançadas nos filmes: primeiro, a noiva do Chucky; depois, a Anabelle; e, mais recentemente, os palhaços que invadiram os cinemas.

Por todo o lado estão espalhados bonecos e Manuela gosta muito do que faz. Não sente medo de andar pelos diferentes espaços e quem por lá passa também não. Mas há quem não se convença. Há uns tempos, conta entre risos, recebeu um email do estrangeiro a perguntar se, durante todos estes anos de profissão, já tinha encontrado algum boneco com poderes sobrenaturais. *Texto editado por Marta F. Reis