Anthony Bourdain: ‘O McDonald’s é a comida do diabo’

Recorde a entrevista que o SOL fez a Anthony Bourdain em 2011.

Entrevista originalmente publicada a 10 de dezembro de 2011


Como está o seu colesterol?

Alto. Tenho de tomar medicação. Recentemente almocei com um grande grupo de chefs. Perguntei quem é que estava a tomar lipitor. Todos levantaram a mão. Era o lipitor ou mudar a dieta…

Passou de cozinheiro toxicodependente a celebridade mundial. Foi uma surpresa?

A surpresa é estar vivo. Nunca pensei chegar aos 55 e pagar a minha renda a tempo. E nunca pensei conhecer Saigão. Nunca pensei, sequer, que veria Roma.

Está a aproveitar a vida?

Seria uma loucura não o fazer. Quer dizer, tenho imensa sorte. Tive três vidas.

Mas tudo tem um preço…

É um preço baixo a pagar. Sei o que é trabalhar. Sei o que é estar de pé na cozinha de um mau restaurante, que cheira mal, a servir má comida a pessoas de que não gosto, dia após dia, 14 horas por dia. Ser reconhecido num aeroporto ou dar autógrafos é um preço muito baixo. Tenho uma filha pequena, de quatro anos. Em nenhuma altura da minha vida antes de tudo isto poderia ter tido uma criança de forma responsável. Como poderia ser pai se ia para a cama, todas as noites, aterrorizado com a hipótese de o senhorio me ligar a dizer que me ia despejar?

Não deixa a sua filha experimentar mcdonald’s. Porquê?

Porque [o McDonald’s] é a comida do diabo. É perversa, tem um perfil de sabor que é aditivo, arruína o palato, transforma-nos em más pessoas. Não quero que ela faça parte dessa cultura, que coma essa comida. Quero que pense neles de forma negativa. Gastam milhares de dólares a tentar que as crianças pensem neles de forma positiva, com os seus brinquedos grátis e os seus palhaços. É carne de merda e uma força do mal no mundo. Dizemos-lhe que é nojento. E se for preciso digo-lhe mentiras terríveis. Tudo o que for preciso. Eles fazem tudo o que podem para manipular as mentes das crianças para gostarem deles.

Trabalhou como chef durante 28 anos. Por que deixou a cozinha?

Quando cozinha confidencial se transformou num êxito, em 2001, a minha vida mudou. Num minuto estava a cozinhar e falido, no minuto seguinte tinha um livro bestseller e uma oferta para viajar pelo mundo a fazer televisão. Nunca voltei.

Sente saudades?

Sinto culpa. Quase todos os meus amigos são chefs. Quando estou com eles e com os seus cozinheiros sinto-me culpado por ter abandonado a profissão.

É a culpa burguesa?

Sim, mas consigo viver com ela. Sei o que é estar falido. Estive sem dinheiro a vida toda.

Descreve o ambiente nas cozinhas de forma surpreendente, cheias de tipos duros, drogas e pequena – ou grande – criminalidade. Ainda é assim?

Hoje menos. É um trabalho difícil e sem glamour mas está tudo muito mais profissional agora do que quando escrevi o livro. Hoje já não é bem visto cheirar cocaína na tábua de cortar. Na maioria dos restaurantes que conheço não seria aceitável. E há mais mulheres nas cozinhas. Tudo mudou bastante.

Mas continua a ser um lugar difícil para uma mulher. Pelo menos, não se vê muitas mulheres à frente dos grandes restaurantes. Porquê?

Nos EUA já há muitas. E muito boas. As mulheres são tão capazes de o fazer quanto os homens, deram provas disso há muito tempo. Antes as cozinhas costumavam ser um local de trabalho hostil para as mulheres, uma sociedade falocêntrica, tipo minas de carvão. As mulheres eram excluídas. Esse ambiente mudou. Por isso, se hoje alguma coisa ainda as mantém afastadas da cozinha, pelo menos nos eua, é o facto de muitas mulheres terem decidido que não querem aquela vida. É uma vida de merda. não gostam das conversas, não querem andar com tipos que passam o dia inteiro a falar de pila. Não têm interesse nenhum nisso. uma chef minha amiga sugeriu a hipótese de que talvez as mulheres se sintam menos inclinadas a andar pela sala de jantar tipo galo de capoeira, por se sentirem embaraçadas. Pode ser verdade.

Viaja, come e escreve. É a vida ideal?

É o melhor emprego do mundo. Vou onde quero, faço o programa como quero, trabalho com pessoas extremamente talentosas. É muito satisfatório. a moeda de troca é que vivo uma vida muito bizarra. Não vejo a minha família tanto quanto gostaria. Imagino como seria se tivesse um horário de trabalho normal mas, na verdade, nunca o tive. Devo ver mais a minha família agora do que veria como chef, em que trabalhava 14 horas por dia, seis dias por semana, depois saía e ia embebedar-me com os outros cozinheiros. No cômputo geral, estou-me a dar bastante bem.

Há anos que viaja à volta do mundo, à procura da refeição perfeita. Já a encontrou?

Muitas vezes. É sempre um acidente, não se pode planear. É ela que nos encontra a nós.

Quais os melhores sítios onde comeu?

A comida de rua no vietname é extraordinária, os ‘centros alimentares’ em singapura também, o sushi topo de gama no japão (realmente extravagante e ridiculamente caro), onde se usam os melhores ingredientes, a comida no país basco (nacionalismo e comida parecem ir bem juntos). Sou casado com uma italiana. A minha primeira viagem a Itália foi só há uns anos, estou ridiculamente apaixonado por Itália. Pão, uma massa simples e um vinho barato são excitantes para mim.

Já escreveu dois livros policiais. Vai haver um regresso à escrita de ficção?

Sim, o próximo livro será ficção.

Outra história de crime?

Sempre.

Onde se vê daqui a dez anos? imagina-se a ter um restaurante?

De maneira nenhuma. Se há coisa que aprendi no negócio da restauração foi nunca ter um restaurante. será um choque para mim se estiver vivo daqui a dez anos, mas se estiver… Há uma cena n’o padrinho ii em que o Robert Deniro regressa a Itália para matar Don Cheech no seu jardim. Don Cheech teve uma boa vida. estava sentado num jardim, em Itália, a fazer mau vinho. Nunca vai acontecer. Mas seria bom. Não consigo pensar nisso. A minha vida tem sido uma surpresa até agora. Por que haveria isso de mudar?

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