Os caminhos de Bourdain em Portugal

Aos nove anos comeu uma ostra para chocar os pais. A rebeldia e o gosto pela comida nunca mudou. O ‘Elvis’ dos chefs desapareceu sexta-feira aos 61 anos. Gravou em Portugal quatro vezes.

Os caminhos de Bourdain em Portugal

Porto branco seco, tónica e casca de laranja. «Sabem que há uma música do rock and roll clássico que se chama ‘White Port & Lemon Juice’», comenta Bourdain, que nunca se ficava pela coisas do paladar. «Claro. … ‘I say WP bum bum LJ’. É do meu tempo», trauteia o crítico Jerry Luper, de copo na mão ao lado de José Meireles, o homem que deu a Bourdain uma das primeiras oportunidades para chefiar uma cozinha  nos anos 90 em Nova Iorque. São os anfitriões na primeira visita do chef a Portugal em 2002. Anos antes, Meireles precisara que alguém o substituísse à frente do restaurante Les Halles e começou aí uma amizade e respeito gastronómico que Bourdain queria perceber um pouco melhor, indo às raízes do português.  

A cena passa-se à chegada a uma quinta no Douro, no episódio gravado por Anthony Bourdain para a série  A Cook’s Tour, a sua estreia televisiva depois do sucesso do livro  Kitchen Confidential, que encerrou a sua vida de cozinheiro para o lançar num percurso mediático como apresentador. O Norte é o destino, em particular Porto e a região do Douro e Celorico de Basto, terra natal de Meireles. Ao cocktail segue-se o repasto: primeiro bacalhau com natas, depois lombo de porco com batata assada e arroz. «Dois hidratos de carbono. É daquelas coisas que está instituído na culinária na América, que tem de ser de determinada maneira. Descobri que 75% a 90% dessas ideias que nos dizem que tem de ser assim estão absolutamente erradas», atira o protagonista. Para rematar, um Porto com 40 anos. E a sucessão de frames tão habitual nos programas de Bourdain ao longo dos últimos anos, copo atrás de copo, a imagem a desfocar, o elogio ao prazer de comer e beber sem regras. E o desabafo: «Estou a ficar bêbado».

Mais tarde, já depois de outra refeição, chegaria o remate de uma viagem onde a comida lhe parecia ‘old school’, um regresso ao passado. «Não percebo bem a cozinha portuguesa, mas percebo porque é que o José é como é um pouco melhor. Geralmente quando somos apaixonados por uma comida é porque está ligada à nossa infância e isso é verdade para todos nós. Qualquer prato que evoque memórias é poderoso».

O chef, escritor e viajante que revolucionou os programas de culinária com o seu estilo boémio e curiosidade antropológica, desapareceu ontem aos 61 anos. A imprensa avançou como causa de morte suicídio. Bourdain foi encontrado morto no quarto de hotel numa manhã em que deveria gravar mais um episódio de Parts Unknown, perto de Estrasburgo, em França.

O episódio de 2002, naquele que era o começo da sua carreira televisiva, marcaria apenas a primeira visita do nova-iorquino a Portugal em trabalho. Regressou em 2009 para um episódio de No Reservations nos Açores. O porquê do destino percebe-se logo aos primeiros minutos de programa: enquanto trabalhou em Cape Cod, Provincetown, Massachusetts, Bourdain estava rodeado de imigrantes dos Açores, sítio de que nunca tinha ouvido falar, confessa.

São Miguel, Faial e Pico são algumas das paragens. Come em casa de famílias e prova (e prepara) o cozido das furnas. No Peter’s, o gin tónico é «o melhor de sempre», declara, acompanhado de queijo açoriano e azeitonas no pão, morcela com ananás, pastéis de bacalhau e linguiça. «Para mim é um flashback culinário dos verões passados a trabalhar em Provincetown. (…) A vida era má, mas a linguiça era boa. Um dos pontos altos para mim foi conhecer boa comida e muita era portuguesa».

Em 2011, com Bourdain já noutro nível de estrelato, a visita a Lisboa para um novo episódio de No Reservations em terras lusas causa sensação. Até porque os anfitriões são tudo menos anónimos. Por coincidência, o episódio repetiu esta quarta-feira à noite no cabo, com Bourdain deliciado na pesca do polvo com José Avillez, à conversa com Tozé Brito, a jogar chinquilho com o o chef Ljubomir Stanisic, a comer conservas com os Dead Combo no Sol & Pesca, no Cais Sodré, e impressionado com António Lobo Antunes, que lhe conta as histórias da guerra e como alguns tabus ainda persistem.

A ginjinha do Rossio ou as bifanas do Trevo, no Chiado, são outros destaques. São precisamente as bifanas (e imperial) que encerram  o episódio. «That’s f* good».

A última visita a Portugal aconteceu em fevereiro de 2017, desta feita num regresso ao Porto, mais uma vez na companhia de José Meireles. Provou a francesinha no restaurante O Afonso e experimentou a autenticidade do mercado do Bolhão. «Muito alto, os estrangeiros são quase todos muito altos», comenta uma das vendedoras. «Mas não sabe aquela: homem grande, piroca pequena», respondeu a colega de banca. «Podem ser tão cruéis», diz Bourdain para a câmara.

Regressa também a Celorico de Basto, ao restaurante de um primo de José Meireles, Sabores da Quinta, onde já tinha estado 15 anos antes para uma matança do porco. Luísa Lemos, filha do proprietário que morreria meses depois desta visita, em julho do ano passado, recordou ontem ao SOL momentos bem passados e um homem simpático, que provou tudo o que lhe trouxeram para a mesa. Na parede do restaurante, agora nas mãos dos filhos de Francisco Lemos, há uma fotografia com o convidado e muitos clientes que estiveram presentes nos dois dias de filmagem estavam ontem surpreendidos com a morte e a partilhar imagens.

Feliz e empenhado em acompanhar a filha

Bourdain, que dizia ter ficado apaixonado pela comida quando aos nove anos comeu uma ostra para chocar os pais numa viagem a França, nunca escondeu o passado de toxicodependência nem sintomas depressivos. Em 2011, numa entrevista ao SOL, questionado sobre como se imaginava dali a dez anos e apesar da reabilitação, não dava o futuro como garantido. «Será um choque para mim se estiver vivo daqui a dez anos…». Acontecendo, a cena perfeita seria uma do filme O Padrinho II, «em que Robert De Niro regressa a Itália para matar Don Cheech no seu jardim. Don Cheech teve uma boa vida. Estava sentado num jardim, em Itália, a fazer mau vinho. Nunca vai acontecer, mas seria bom».

Há três meses, deu uma das últimas entrevistas à revista People. A revista acompanhou a estrela da CNN, a quem o Smithsonian chamou um dia o ‘Elvis dos chefes rebeldes’, durante três dias. Uma das ideias é que não pretendia reformar-se. «Desisti disso. Acho que sou demasiado ansioso, neurótico, obcecado. Teria dado uma resposta diferente há uns anos. Posso ter tido a ilusão de que seria feliz a fazer jardinagem, mas não, tenho a certeza que não conseguiria». Dizia que sentia a responsabilidade de viver para a filha Ariane, de 11 anos. Na entrevista, o chef assumia ter tido ocasiões ao longo da vida em que pensou na morte, mas não naquela altura. «Sou feliz de uma maneira que nunca pensei que seria».