As causas fracturantes…

Se as esquerdas perdem uma votação, há que repeti-la as vezes necessárias até obterem a maioria.

Com a ‘chave do cofre’ cativa em Bruxelas, sobram as chamadas ‘causas fraturantes’ para os deputados se entreterem, guiados pela agenda do Bloco de Esquerda, e este secundado pelos ‘problemas de consciência’ repartidos pelo espetro ideológico com assento parlamentar.

O Bloco é um epifenómeno urbano, que um acaso eleitoral recuperou quando estava à beira da extinção, atravessado por cisões cirúrgicas e pela deserção calculista de Francisco Louçã, o ideólogo do grupo, que, a pretexto da sua «conceção pessoal do princípio republicano» se retirou de ‘coordenador’ do partido, entregando-o a uma solução bicéfala de duração efémera. 

Na ressaca das legislativas de 2011, quando o Bloco parecia ter os dias contados, Louçã prometia continuar vigilante, porque «é assim que gosto de viver. Intensamente, incansavelmente, sem nunca desistir».

Não mentiu. Entregou a gestão corrente do Bloco à dupla Catarina-Semedo, uma originalidade que o livrava de maçadas e de comparações, e preparou-se para outros voos, simulando um despojamento que nunca teve.      
Para isso contou com o encantamento das redações, perante a chamada ‘esquerda chique’, oriunda de uma certa burguesia instalada.

É vê-lo hoje como beneficiário dos favores de Balsemão – que teve sempre um ‘fraco’ por este ‘radicalismo caviar’ –, ao oferecer-lhe ‘tempo de antena’ na SIC e um espaço desproporcionado no caderno de economia do Expresso, onde prossegue, ‘incansavelmente’, a sua doutrinação. 

Para ele, há uma extrema-direita a crescer na Europa, enquanto omite a extrema-esquerda que governa a Grécia – aliás, de braço dado com os populistas de direita – ou a ‘geringonça’ à espanhola, com o suporte dos ‘irmãos’ do Podemos. 

Em pouco mais de cinco anos, Louçã conseguiu libertar-se do empecilho de ser porta-voz formal do Bloco, para continuar a sê-lo quando lhe apetece, sem ter de cuidar da ‘mercearia’ do partido. 

E soube juntar a esse talento de ‘salta pocinhas’ mediático os assentos no Conselho de Estado e no Banco de Portugal, que lhe conferem lustro, além da cátedra universitária. Não lhe faltam sinecuras. É obra, para um missionário de devoção trotskista! 

Aliás, é interessante recordar, a esta distância, os ‘orgulhos’ de que se reclamava Louçã no suposto adeus ao Bloco. A ‘herança’ era variada, incluindo a abertura do sigilo bancário, a despenalização do aborto, o casamento homossexual ou a proteção das mulheres na violência doméstica.

Os seus discípulos seguiriam a cartilha sem desfalecimentos, acrescentando-lhe outras ‘causas fraturantes’, como o ‘direito à autodeterminação de género’ dispensando parecer médico para uma alteração do sexo em adolescentes ou a proposta de mudança do Cartão de Cidadão para ‘Cartão de Cidadania’, alvo de justa chacota. Mas não desarmam.
Nas últimas semanas, o Bloco voltou à carga com a eutanásia, eufemisticamente tratada como ‘morte assistida’, em parceria com o PS e Os Verdes. 

Chumbados os projetos no Parlamento, os bloquistas reagiram empertigados, anunciando que irão repô-lo em próxima legislatura, enquanto Louçã, no papel de tutor, se apressou a escrever que haverá então «condições para aprovação da lei, malgrado a sua oposição». A ‘democraticidade’ da afirmação é de se lhe tirar o chapéu…

Infelizmente, nem o Bloco nem outros fogosos defensores da eutanásia se lembraram de pugnar pelo alargamento, tão urgente, da rede pública de cuidados continuados e paliativos, para que doentes com enfermidades complexas ou terminais sejam devidamente assistidos e tenham direito a viver, até ao fim natural dos seus dias, com menos sofrimento e mais dignidade.  A fila de espera para internamentos é interminável.  

O comportamento das esquerdas nestas matérias sensíveis é bem sintomático. Ou ganham a votação, e é uma escolha correta e definitiva; ou a perdem, e há que repeti-la as vezes necessárias até obterem a maioria, nem que seja pelo cansaço e pela instrumentalização dos media. 

Nem se apercebem de que estão a legitimar a reversão, no futuro, de várias leis controversas em que se empenharam e que dividem a sociedade portuguesa. Mas se alguém tomar a iniciativa, é fácil prever a reação dos ‘donos da verdade’. 
Os efeitos desta estratégia lesiva dos valores tradicionais já se notam, até, no interior do PS. A pressa em votar a lei da eutanásia, transversal às esquerdas (excetuando o PCP, que se distanciou, mas meteu a ‘sucursal’ d’Os Verdes a votar a favor), contaminou também alguma direita. Foi o caso de Rui Rio, inábil, a criticar pressões, quando ele próprio as praticou. E saiu vencido.
O conformismo e o ‘deixa andar’ de muitos tem funcionado como aditivo para as ‘causas fraturantes’. E o seguidismo acéfalo de outros explica o resto…