As culpas de Merkel

Angela Merkel fez o que era necessário fazer – e com isso salvou a Europa de uma divisão irremediável. Sem Merkel, o Norte já se teria separado do Sul.

A visita de Merkel a Portugal foi pretexto para vários comentários, em geral positivos.

A esquerda – e sobretudo o BE – que tanto se ofendeu com a vinda da chanceler alemã a Portugal no tempo de Passos Coelho, promovendo manifestações de protesto e pintando cartazes brejeiros, refugiou-se agora num silêncio envergonhado.

As opiniões mais críticas vieram mesmo da direita.

Remexendo no passado, Lobo Xavier criticou a chanceler alemã, na Quadratura do Círculo, por ter dividido a Europa «entre países credores e países devedores». 

E por demonstrar «falta de solidariedade» em relação aos países do Sul.

Segundo ele, estas posições contribuíram decisivamente para a crise que estão a viver na Europa os partidos tradicionais e, em particular, os partidos socialistas.

Também Marques Mendes, no seu comentário dominical, referiu a responsabilidade de Merkel no «crescimento dos populismos», pelo modo como atuaram «as troikas», embora elogiasse a chanceler pela atitude «humana» adotada em relação à imigração. 

Ouvi estas opiniões com a maior estranheza.

Então foi Merkel que dividiu a Europa em duas?

A divisão entre ‘Norte’ e ‘Sul’ não é muito anterior à chegada de Merkel ao poder?

Foi Merkel que inventou a sigla PIIGS (Portugal, Ireland, Italie, Greece, Spain) aplicada aos ‘países gastadores’ (chamando-lhes pouco subtilmente ‘porcos’)?

Sejamos honestos: o papel de Merkel foi exatamente o contrário – apresentou uma solução para um problema que ameaçava destruir de vez a unidade da Europa.

Quando Angela Merkel se tornou chanceler, há muito que se sentia o descontentamento das populações de países do Norte, como a Holanda ou a Dinamarca, por andarem a alimentar aquilo que diziam ser a ‘preguiça’ dos países do Sul.
A situação ameaçava tornar-se insustentável.

Merkel e Shäuble perceberam que só havia uma forma de resolver o problema: obrigar os países do Sul a ‘entrarem na linha’, ou seja, a porem as contas públicas em ordem, acabando com os défices excessivos e travando o aumento exponencial das dívidas soberanas.

Esta medida acalmou as opiniões públicas do Norte da Europa, que sentiram haver finalmente alguém disposto a fazer alguma coisa para resolver uma situação que se arrastava há muito e que consideravam injusta.

Mas mais: esta medida também viabilizou financeiramente os países do Sul, que estavam à beira de não ter ninguém que lhes emprestasse dinheiro a juros aceitáveis.

É claro que alguns países, como Portugal, foram sujeitos a duros programas de austeridade e tiveram de fazer muitos sacrifícios; mas qual era a alternativa?

Reestruturarem a dívida – para no dia seguinte começarem de novo a endividar-se?

Angela Merkel fez o que era necessário fazer – e com isso salvou a Europa de uma divisão irremediável.

Sem Merkel, o Norte já se teria separado do Sul.

Aliás, a ideia de que as troikas são responsáveis pelos populismos é desmentida pelos próprios factos: nos países onde houve troika, como Portugal ou a Irlanda, não há fenómenos populistas visíveis.

Pelo contrário: os populismos crescem em países como a Áustria ou a Polónia, onde não houve troikas nem intervenções financeiras externas.

A questão é, portanto, outra.

Merkel é parcialmente responsável pelos populismos que crescem todos os dias na União Europeia, não pelas razões apontadas por Lobo Xavier ou Marques Mendes, mas pelos motivos pelos quais este a elogia.

Na verdade, o que tem contribuído mais para o crescimento da extrema-direita é a posição de Merkel em relação aos imigrantes.

Ao abrir-lhes os braços, intimando outros países a aceitá-los, a chanceler alemã abriu profundas brechas dentro e fora do seu país.

A ‘invasão’ da Europa por pessoas vindas do Sul, com outros credos, outros hábitos e outras culturas, não poderia deixar de provocar anticorpos.

Nos países, nas cidades e nos bairros onde se instalaram imigrantes, houve reações violentas – e os partidos extremistas encontraram terreno fértil para a propaganda.

Ao contrário do que alguns bem intencionados pensaram (e pensam), o problema dos migrantes não é passível de ser resolvido com ‘boas vontades’. 

Imaginemos que Merkel dizia amanhã que a Europa poderá receber mais 1 milhão de migrantes.

Ora, quando esse milhão entrasse, o que aconteceria?

A Europa fecharia a porta? 

Se hoje não consegue fazê-lo, como o conseguiria nessa altura? 

Autorizaria, possivelmente, a entrada de mais 1 milhão.

E quando esse segundo milhão entrasse, o que faria a seguir?

A questão não tem saída.

Ao não tomar uma atitude já, a União Europeia está apenas a adiar o problema – e a arranjar problemas.
A Europa já é hoje um barril de pólvora – e sê-lo-á cada vez mais.

A questão só pode resolver-se na origem, evitando que as pessoas abandonem os seus territórios e comecem a caminhar para Norte.

Criando, por exemplo – transitoriamente –, um ou dois Estados de acolhimento onde os refugiados possam encontrar abrigo.  

Mas estimular as migrações para a Europa, como Merkel (e outros líderes) na prática tem feito, só contribui para os naufrágios no Mediterrâneo, onde os migrantes morrem às centenas, para os conflitos nas fronteiras, onde milhares de migrantes se acumulam sem condições, para o agravamento das tensões sociais e raciais nos países de destino.  

Ao contrário do que se tem dito, o problema de Merkel foi não ter mostrado na questão dos refugiados a mesma firmeza, frieza e lucidez que mostrou nas questões financeiras.

Nestas, os problemas resolveram-se, pelo menos temporariamente; no que respeita aos migrantes, a ferida continua aberta. 

P.S. – Todos os políticos dizem lamentar a queda da natalidade, mas Rui Rio foi o primeiro a apresentar uma proposta global que pode, de facto, inverter a actual tendência. Custa dinheiro? Mas o envelhecimento do país não custará, a prazo, muito mais? Pela primeira vez, Rio conseguiu encostar o Governo à parede. E falou de vida, num país onde nos últimos meses só se falou de morte!