Portugal-Espanha. “Ponga los dos! Ponga los dos!”

O primeiro confronto entre as duas seleções para um Mundial deu em 9-0 para os espanhóis. Uma canção da época mofava: “Quando a seleção trabalha/ Como eu quero/ Então é que não falha/ Nove a zero!”

Se a fase final do Mundial de 1930 fora aberta a todas as seleções, para 1934, a FIFA tinha imposto jogos de qualificação, distribuindo as equipas por eliminatórias geográficas ou, pelo menos, o mais geográficas possíveis. 

Geograficamente, coube a Portugal disputar com a Espanha uma das vagas no Mundial de Itália. Ninguém em perfeita consciência seria capaz de adivinhar que, como nas aventuras dos gauleses desenhadas por Uderzo e inventadas por Goscinny, o céu estava à beira de nos cair em cima da cabeça.

E havia um otimismo comedido, no entanto. É verdade que em abril do ano anterior, em Vigo, Portugal voltara a perder sem apelo nem agravo (0-3) com o seu vizinho implacável. 

Coube a Portugal deslocar-se a Madrid, ao velho campo de Chamartín, do Real Madrid, para o primeiro de dois jogos que eram, nesse tempo, os mais importantes da história do futebol português, dia 11 de março de 1934. A segunda mão estava marcada para oito dias depois, em Lisboa. Em caso de ser necessário um desempate, este seria em Vigo. 

Na antevéspera do encontro, a esperança lusitana parecia crescer a olhos vistos. “Conseguirá o onze português ser a primeira equipa nacional estrangeira a bater a Espanha em sua casa?”, perguntava “Os Sports” na primeira página. Uma esperança que se mantinha acesa apesar de se relembrarem os trabalhos de Hércules que a “Alma” portuguesa teria de realizar para levar de vencida a Fúria espanhola: nunca, de Espanha, uma seleção estrangeira tinha saído com a vitória, nem mesmo essa todo-poderosa Inglaterra que lá perdera por 3-4; o relvado de Chamartín jogaria a nosso desfavor, habituados que estávamos aos pelados nacionais. 

Desastre! O selecionador Ribeiro dos Reis não se deslocaria a Madrid. Apoquentado por doença grave de sua mãe, é substituído pelo seu companheiro de jornalismo e de vida, Ricardo Ornelas. Estudam em conjunto a estratégia, tudo está previamente estabelecido.

Ficou combinado que cada conjunto poderia fazer três substituições e que Portugal, que usava normalmente um equipamento igual ao de Espanha (camisola vermelha e calção azul), jogaria de camisola verde. A Fúria vestia vermelho-sangue. 

Aos 2 minutos já Portugal sofrera um golo, marcado por Lángara. O keeper Soares dos Reis acusava claramente a inibição da sua estreia internacional e precipitava-se sempre que a bola rondava a sua baliza. Havia na defesa lusitana uma sensação de completo descontrolo, apesar de estar tudo ainda no início. Cillauren, Marcoleta, Reguero e Lángara jogam a seu bel-prazer. Do lado português, apenas o experiente Augusto Silva, o velho Leão de Amesterdão, como ficara conhecido, se ia rebelando contra uma superioridade contrária cada vez mais asfixiante. É ele que empurra Acácio Mesquita (que só tinha sido internacional uma vez e não voltaria a sê-lo) e Domingos Lopes (estreia absoluta) para uns tímidos movimentos de ataque, apoiando Pinga, outro inconformado que vai tentando alvejar de longe a baliza de Zamora. Com um guarda-redes daquela dimensão, essas tentativas tornam-se quase patéticas. 

Os cantos contra Portugal multiplicam-se. Depois de três consecutivos, Gorostiza fornece a Lángara a possibilidade de mais um golo que este não desperdiça. O 3-0 surge num penálti convertido pelo insaciável Lángara. O desastradíssimo Soares dos Reis é substituído por outro estreante, o benfiquista Amaro. Alguém no público soltou, bem-humorado, para o treinador de Portugal: “Ponga los dos!” 

A pressão espanhola era tão grande que durante largos minutos Portugal não saía do seu próprio meio-campo. Com a vantagem, a Fúria foi esmorecendo. Mas o pesadelo estava longe de acabar. 

O total desmembramento de Portugal facilita a ação dos espanhóis, que regressam para a segunda parte ainda mais dinâmicos. Chocha faz o 4-0 e, pouco depois, aproveitando o adiantamento de Amaro, Luis Regueiro faz o quinto golo com um remate longínquo e colocado. Nada há a fazer para evitar o descalabro. Sentindo-se capazes de uma proeza igual à que haviam cometido frente à Bulgária (13-0) no seu último confronto internacional, os espanhóis atiram-se desenfreadamente sobre a atarantada defesa lusa. Os cantos voltam a suceder-se a um ritmo confrangedor. E com eles prossegue a chuva dos golos: 6-0 por Valtolrá; 7-0 por Regueiro; 8-0 por Lángara; 9-0 por Lángara. Ufff! São quase seis horas da tarde em Madrid e anoitece. O árbitro Van Praag põe fim ao martírio de uma Alma destroçada. A Fúria, saciada, prepara–se agora para um passeio até às margens do Tejo.

Os 9-0 marcaram profundamente o futebol português. Seriam motivo de zangas e conflitos, alvo de chacota – ganhou fama uma canção chamada “Trevo de Quatro Folhas”, de Nascimento Fernandes, que ia assim: “Quando a seleção trabalha/ Como eu quero/ Então é que não falha/ Nove a zero!