Portugal-Espanha. Estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos

Hoje, em Sochi, contra uma Espanha abalada pela saída precipitada de Lopetegui, perceberemos se Fernando Santos está disposto a injetar um pouco mais de rebeldia na equipa com a entrada para o onze, por exemplo, de Bruno Fernandes e Gonçalo Guedes 

Chegou o dia. Chegou a hora. Hoje mesmo, pelas 19 horas lusitanas, a seleção nacional, enfeitada com a sua faixa brilhante de campeã da Europa, entra em campo para fazer frente não apenas a um dos grandes favoritos à vitória neste campeonato do mundo, que se disputa nas imensidões já não soviéticas da Rússia, mas num país que, por mais modernizado que vá surgindo aos nossos olhos de cada vez que cá vimos, continua a ser um continente com a sua dose fascinante de mistério.

Portugal-Espanha.

Deixo ambos aí em cima, de propósito, dependurados no fio equilibrista dos artistas do trapézio.

É um jogo que se perde nos confins do labirinto da memória. Existe desde 1921 quando, quase Natal, a primeira seleção portuguesa de todos os tempos, ainda vestida de negro pela influência dos muitos casapianos que a serviam, foi a Madrid defrontar a Espanha, que viria, por obrigação geográfica e cultural, a tornar-se o nosso maior rival, aquele que mais vezes surgiu no nosso caminho, seja para aplicar aos portuguesinhos valentes humilhações de provocar aneurismas, como diria o Alencar do divino Eça, ou deixando muito pouco espaço para as nossas espontâneas alegrias. De tal forma que, aqui chegados, a Sochi, amena estância do mar Negro, não tão longe assim dos picos nevados do Cáucaso, preparamo-nos para o nono encontro oficial entre ambos os países e reparamos que o nosso tão magro pecúlio não vai além de uma única vitória, a do Europeu de 2004, em Alvalade, no último jogo da fase de grupos.

Além disso, houve o tempo das eliminatórias para os mundiais, nos primórdios da prova, que inclui o maldito nove-a-zero que valeu cançonetas trocistas, e, mais recentemente, a meia-final do Euro 2012, perdida nas grandes penalidades, e o afastamento nos quartos-de-final em 2010 na África do Sul. A alegria vermelha de Espanha foi ficando sempre por cima da habitual melancolia azul dos portugueses. Fica uma mágoa difícil de disfarçar.

Novo tempo Mas estamos num novo tempo. Portugal é campeão da Europa e a Espanha é campeã de coisa nenhuma. Tempo de orgulho, portanto. Ou, como cantava Ivan Lins: “No novo tempo, apesar dos castigos/ Estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos…”

Portugal de Ronaldo, que garante uma espécie de seguro de vida refletido em golos. Portugal de não sentir a obrigação de ser tímido ou timorato. Todavia, há um estilo no conjunto de Fernando Santos, quase ia a escrever que há uma filosofia. Não se correm riscos desnecessários, não se desprotege a retaguarda na ânsia do golo imediato, não se impõem ritmos incapazes de se manterem pelo tempo fora. Ainda por cima quando, do outro lado, o conjunto que até anteontem era de Lopetegui (rapidamente saneado por uma questão meio cretina de ter mais boca do que barriga, açambarcando o que podia e não podia) parece cada vez mais afinado na sua forma de trocar continuamente a bola em deslocação vertical apoiada em movimentos horizontais, como uma teia de aranha que submete o adversário a uma respiração minuto a minuto mais pesada, mais custosa.

Haverá na cabeça do selecionador português determinadas dúvidas, ele próprio não as escondeu. Sobretudo quando o jogo inaugural deste grupo B pode definir um traçado claro para tudo o que virá nas jornadas seguintes.

Ninguém espera que Portugal ou Espanha fiquem pelo caminho. Mas a derrota de um deles nesta refrega inicial pode atirar para as costas do perdedor uma camada de nervos que lhe diminua as capacidades. 

Logo à noite, no Fisht Stadium de Sochi, perante um público que pode atingir o interessante número de 45 mil adeptos, saberemos se Gonçalo Guedes e Bruno Fernandes conseguiram, pelo seu ritmo de jogo, pelo seu repentismo, pela sua qualidade técnica misturada com uma inequívoca capacidade para recuperar a bola, convencer Fernando Santos a injetar na equipa portuguesa uma dose de juventude rebelde que lhe tem faltado aqui e ali.

Não restarão muitas dúvidas que a despeito de, por interesses comuns, o desafio entre Portugal Espanha se poder tornar um ramerrão aborrecido, com ambos mais apostados em sair de Sochi com tudo em aberto para resolverem a questão do apuramento com os mais débeis Marrocos e Irão, no caso de haver nos lusitanos uma ânsia antiga que os leve a querer ir além da dor e do Bojador, o sangue na guelra terá um peso fundamental.