‘Sabes o que é a espiritualidade?’

Anthony Bourdain parecia ter a vida que todos ambicionam: fazia o que gostava, viajava, era famoso e bem recebido onde quer que fosse

Nas férias que passava com o meu pai e os meus irmãos em parques de campismo no sul de França ou no norte de Espanha, era eu o cozinheiro. 

O meu pai partiu para o exílio quando eu tinha 10 anos, e como o dinheiro não abundava não podíamos obviamente ir todos para o hotel ou comer em restaurantes. Montávamos a tenda em campings e cozinhávamos as refeições num pequeno fogão Camping Gaz. 

Rapidamente fui eu que mostrei mais jeito para a culinária, sendo investido nas funções de cozinheiro oficial da família. É preciso dizer que a minha mãe não fazia férias connosco – mas mesmo que fizesse isso não mudaria muito a situação, pois sempre detestou cozinhar.

Depois de eu casar, essa tarefa passou a caber à minha mulher. Mas sosseguem as feministas: procuro não a explorar, e com alguma frequência vamos almoçar ou jantar ao restaurante. E às vezes compramos comida feita.

Embora hoje não cozinhe, gosto de ver programas de culinária – e as estações de televisão estão cheias deles. Foi assim que conheci Anthony Bourdain. No seu programa, ele não cozinhava: vagueava pelo mundo, ia a restaurantes, experimentava as especialidades de cada país e de cada região, comia as coisas mais estranhas sempre com um sorriso. 

Esteve várias vezes em Portugal,  indo de um extremo ao outro: comeu as populares  ‘francesinhas’ nortenhas mas também degustou a nouvelle cuisine de José Avillez, distinguido com duas estrelas Michelin. E até experimentou (e elogiou) as famosas bifanas de Vendas Novas, com as quais também me delicio com alguma frequência no regresso de Estremoz.

Anthony Bourdain parecia ter a vida que todos ambicionam:  fazia o que gostava, viajava, era famoso e bem recebido onde quer que fosse. Além disso, tinha uma excelente presença: era alto e bem-parecido, com ar de bon vivant e aquele aspecto de homem experiente, de cabelo grisalho, de que as mulheres gostam – as velhas e as novas.

Pode dizer-se que projetava uma imagem de felicidade. Assim, ao ver a notícia da sua morte pensei tratar-se de outra pessoa. Não podia ser ele. E só quando mostraram a fotografia acreditei que era mesmo dele que se tratava. Fora encontrado morto num quarto de hotel do norte de França, na Alsácia. E a Polícia suspeitava de suicídio. Depois soube-se que se enforcara. Deixava viúva uma mulher mais nova do que ele e órfã uma menina de 11 anos.

Numa entrevista dada a um canal de TV, Bourdain confessava que até aos 44 anos tivera uma vida difícil, convivendo com gente horrível, «tipos suados e malcheirosos». Só depois dessa idade passara a ter uma boa vida. 

Ao ouvir estas afirmações, veio-me à cabeça uma história que já contei nesta coluna. Um americano dotado de estranhos poderes tornou-se de repente célebre após ter mostrado na televisão as suas habilidades. O homem passava com os dedos por um garfo de metal, o garfo começava a dobrar-se, como se estivesse a ser aquecido a alta temperatura, e finalmente partia-se. Eu vi com os meus olhos o homem fazer este número.

Pois, a partir do momento em que foi à televisão, o fulano começou a ser convidado para toda a parte, recebendo chorudos cachets. 

Enriqueceu, comprou casas de luxo em vários lugares, carros de alta cilindrada e até um avião particular. Mas nessa altura interrogou-se: «A felicidade é isto?». Por essa época encontrou o ex-Beatle John Lennon, que o interpelou: «Sabes o que é a espiritualidade?». Como o homem dissesse que não, Lennon disse-lhe: «Vai à procura dela». 
O fulano vendeu tudo o que tinha – os apartamentos, as empresas, os carros e o avião –, meteu-se com a mulher e os filhos num voo para o Japão, e instalou-se numa casa junto ao Monte Fuji. Sem televisão, nem telefone, nem carro. Esteve lá um ano. E quando voltou era outra pessoa: sentiu que se tinha reencontrado.

Bourdain fez-me lembrar esta história. Até aos 44 anos foi um ilustre desconhecido, teve uma vida difícil, experimentou o mundo das drogas. Mas nessa altura redimiu-se. Teve sorte na vida e tornou-se famoso. Começou a vaguear pelo mundo – como o homem da história vagueou pela América – e enriqueceu como o outro. E aí provavelmente interrogou-se: «Ser feliz é isto? É isto a felicidade?». E não tendo a sorte de encontrar um John Lennon que lhe indicasse o caminho da espiritualidade, estando ‘condenado’ a comer, comer, comer aqui e ali, experimentar isto e aquilo, gozar os chamados ‘prazeres da vida’, enforcou-se num quarto de hotel.

A contrariar esta história está apenas uma entrevista dada por ele há três meses à revista People, onde se confessava feliz: «Sou feliz de uma maneira que nunca pensei que seria», disse. Mas julgo que estava a enganar-se a si próprio.

Uma pessoa feliz não se mata. A menos que tenha descoberto entretanto alguma coisa que o perturbou: um problema de saúde, uma traição conjugal, uma complicação com a filha. Não sendo isso, julgo que a razão do suicídio foi mesmo não ter encontrado a espiritualidade que podia fazê-lo feliz. E não falo necessariamente de espiritualidade em sentido religioso – mas sim no equilíbrio entre matéria e espírito que todos os seres humanos têm de encontrar para se sentirem felizes.