Portugal-Marrocos. Tanto coração a bater fora do peito…

Vitória (1-0) de sofrimento continuado. O golo inevitável de Ronaldo não impediu que Portugal fosse longamente dominado pelo seu adversário marroquino

Atravessa um homem três das cinco circulares que tem Moscovo (em Lisboa, conheço a segunda, mas parece que saltaram a primeira) para cair no verde denso do Parque da Cultura, com a magnificência do inimitável Hotel Kiev no horizonte, e no Estádio Luzhniki, ainda com a cabeça perdida lá na jogatana de Sochi, frente à Espanha, e não espera mais que a repetição da qualidade de tudo aquilo que Portugal e, sobretudo, Ronaldo foram capazes de atingir, a despeito de, como é óbvio, estarmos noutro ambiente, noutra conjuntura, noutro momento deste campeonato do mundo encarado com uma indisfarçável confiança. Esperámos, portanto, em vão.

Ao olhar em redor deste estádio sóbrio e clássico vejo as manchas vermelhas dos portugueses, pequenas, quase insignificantes, perdidas na multidão de marroquinos que desde ontem invadiram a cidade e, infelizmente, todos os espaços do meu hotel, numa orgia de conversas e canções de provocar aneurismas, como diria o Alencar d’“Os Maias” do divino Eça. Nunca percebi a ideia que se espalha pelos jornais, rádios e televisões de que a seleção nacional joga em casa, seja onde for. Não joga, como não jogou.

Aliás, julgaram-se os Leões do Atlas, como gostam de ser pomposamente chamados, tão à vontade que atingiram o ponto idiota do à vontadinha. Empurrados pela energia do seu capitão, Amrabat, lançaram-se sobre os portugueses à moda de Alcácer-Quibir. Só que nisto de capitães há um que está muito para lá do emblema simpático da braçadeira. Ronaldo vai ao cúmulo da protérvia neste tempo em que os deuses do futebol deixaram de o olhar de lado para lançarem sobre ele os raios mágicos da quase infalibilidade. Na primeira vez que tocou na bola, a centro de Moutinho, voou como um Ícaro de aço para um golo solar. Na segunda foi traído por uma escassez de milímetros de uma bola rasa que levava em si o veneno das áspides.

Um nuvem sombria pairou sobre o Luzhniki. Sinal dos céus.

Marrocos revolta-se; Portugal treme.

Ronaldo está lá. Ele está sempre lá!

Resolveu atribuir a si mesmo o dom da ubiquidade e tanto está na área adversária para o golo como na área lusitana para ajudar nos cantos, com a sua estatura altiva.

Apesar da presença de João Mário no lugar de Bruno Fernandes, o meio-campo português parece curto, vê bolas surgirem nas suas costas, os centrais têm movimentos de inquietação, Rui Patrício é obrigado a ser elástico e tranquilo.

Os contragolpes não saem.

Ah, e como precisávamos deles!

Histerismo Subitamente há mais batalha do que jogo, mais precipitação do que paciência, mais excitação do que inteligência.

Um histerismo patético perpassa pelos homens do Magrebe, sempre dispostos a discutir qualquer decisão do árbitro.

E o seu público vai atrás, em falange.

Portugal precisa de amansar a fera voraz dos nervos. De uma pausa neste dá-e-leva, neste luta-que-luta, neste joguinho ranzinza, resmungão e irritante.

Os marroquinos perseguem Ronaldo a patadas como se caçassem uma ratazana. A gente percebe-os, mesmo que os incrimine: é a ratazana do medo que lhes vai, a pouco e pouco, corroendo as entranhas, a consciência que é dali que virá o castigo irreparável dos seus erros mais minúsculos. Só que tomaram conta dos acontecimentos, ninguém pode negá-lo. Macia, permeável, a seleção nacional sujeita-se, uma e outra vez, ao golpe inquietante que trará consigo uma nova realidade. Gonçalo Guedes recebe um passe luminoso de Cristiano Ronaldo e por pouco não atira o opositor contra as cordas. Mas esse lance não equivale a uma noção de equilíbrio que há longos minutos desapareceu do relvado do Luzhniki. William Carvalho é uma ilha. Uma ilha sem farol nem faroleiro. Uma ilha branca perdida num mar vermelho à espera de socorro urgente. Ou da acalmia de um intervalo.

Surgiu este. Um suspiro de alívio? Sim, também. E a respiração funda de quem tem de gastar alguns minutos a olhar para as próprias insuficiências. 

Entra pelos olhos dentro a dependência que este Portugal tem do seu capitão. De tal ordem que, contrariando escola e hábitos há muito arreigados, se dispõe a praticar um futebol direto durante grandes fatias do jogo. Hervé Renard não tem apenas nome de raposa. Tem-lhe a astúcia. Ao subir a pressão sobre a seleção nacional até ao nível do seu trinco, partiu-a em dois e deixou Ronaldo e Gonçalo Guedes sem bolas disponíveis.

Era preciso uma resposta. E não esperar somente pela insaciabilidade de um atleta tão extraordinário como admirável.

Embora já sem a soberba inicial, Marrocos tem cinco avançados em permanência: Ziyach, Boussoufa, Belhanda e Amrabat atrás de Boutaib.

Fernando Santos faz entrar Gelson, encosta Guedes sobre a esquerda e deixa Cristiano Ronaldo entregue à dureza dos defesas africanos.

O céu voltou a abrir-se sobre o estádio que fervilha de turbações.

Há algo lá em cima, nesse céu, que vela por Portugal. Talvez um desses santos e santinhos a que o nosso povo recorre na sua timidez de suplicar diretamente a Deus.

Patrício é enorme: os seus braços são asas que o criador dos homens resolveu não acabar. E ele multiplica-os a seu bel–prazer, defendendo um golo com um gesto em quase tudo igual ao que deixou Banks emoldurado no museu da memória perpétua perante a cabeçada de Pelé numa tarde de calor de rachar catedrais, como dizia Nelson Rodrigues, lá na Guadalajara de 1970. 

Guadalajara. Maldita Guadalajara onde José Torres, o homem que sonhava, viveu o seu maior pesadelo ao perder com Portugal frente a Marrocos no Mundial de 1986. Pouco importa agora: a História pode repetir-se, mas a nossa vida não. 

Faltam 15 minutos em Moscovo. Os portugueses reduzem-se cada vez mais a 30, 40 metros de campo. Setenta e oito mil pares de olhos (descontando um ou outro amblíope) não desgrudam do retângulo verde no qual a seleção nacional se encolhe cada vez mais na defesa desse golo madrugador de Cristiano Ronaldo.

O cansaço transparece.

Pode ser que a crença muçulmana esmoreça em definitivo. Mas ninguém acredita.

Este é o jogo que apaixona os homens e, neste jogo, só a crença não basta.

Há quem tente, em desespero, vir lá do fundo de si próprio e dar aquilo que, se calhar, já nem tem para dar.

Portugal já é só um coração que bate fora do peito.

Uma ansiedade que se desfaz ao som de um apito.

No céu azul-ferrete de Moscovo cruzam-se os traços brancos dos aviões que a brisa morna despenteia.