Anthony Bourdain e a arte de gozar a vida

Bourdain parecia saber tudo o que há para saber sobre a arte de gozar a vida. Quanto à felicidade… bom, isso já é outra conversa.

Depois de quase uma semana a digerir a morte de Anthony Bourdain, esta quarta-feira fui buscar o único texto seu que tenho em casa. Encontra-se numa antologia de artigos sobre comida e bebida publicados ao longo de décadas na revista New Yorker, e o seu título é sensacional, quase desconcertante: ‘Don’t Eat Before Reading This’ (Não Coma Antes de Ler Isto).

Ocupa apenas seis páginas e meia, mas está cheio de inconfidências, dicas e segredos sobre comer fora. Mas, sobretudo, lê-se com o mesmo prazer com que se saboreia uma boa refeição. Por exemplo: «Pessoas que pedem carne bem passada prestam um valioso serviço para todos aqueles no negócio que se preocupam com os custos:pagam pelo privilégio de comer o nosso lixo. […] Quando um dos cozinheiros encontra um pedaço de bife particularmente desengraçado – duro, repleto de nervos e de tecido conjuntivo, da parte do lombo junto aos quadris, e talvez um pouco fedorento por causa do prazo de validade – balança-o no ar e pergunta:‘Hei, chefe, o que quer que faça com isto?’». A resposta quase certa é: «Guarda para bem passado».

No final desse texto de 1999, Bourdain contava como se tornou chef de cuisine de um restaurante tradicional francês, «onde os clientes comem a carne mal passada, os vegetarianos são raros, e todas as partes do animal – cascos, focinho, bochechas, pele, e órgãos – são ávida e respeitosamente preparados e consumidos». E terminava com estas palavras: «Sinto-me em casa».

No ano seguinte, 2000, Bourdain tornava-se uma estrela com Kitchen Confidential, o livro best-seller onde contava as suas aventuras e desventuras no ramo da restauração, o consumo de drogas, a pressão terrível e o desgaste provocados por esta profissão.

Recentemente, quando o víamos nos seus programas de televisão – espirituoso, seguro e encantador – pensávamos que todos esses problemas tinham ficado para trás. De cozinheiro passara a estrela da TV e de estrela da TV a guru. Viajava para onde queria, sabia onde encontrar as comidas mais deliciosas (fosse em restaurantes de luxo, fosse numa barraquinha de rua), tinha amigos importantes, dormia nos melhores hotéis (e com quem queria…), sabia estar, conversar e escrever como poucos. Depois de um início duro, tumultuoso, parecia ter atingido um estatuto que lhe permitia fazer só o que queria.

E, no entanto, na noite de 7 de junho pegou no cinto do roupão num hotelzinho (de cinco estrelas, claro) da Alsácia e enforcou-se.

Bourdain parecia saber tudo o que há para saber sobre a arte de gozar a vida. Quanto à felicidade… bom, isso já é outra conversa.