Qual é mesmo o peso do privado no SNS?

Tema está em cima da mesa com a revisão da lei de bases da saúde. Anualmente quase 20 milhões de requisições de exames, análises e tratamentos são aviados em clínicas particulares. IPSS e privados detêm a maioria das camas da rede de cuidados continuados

O Bloco de Esquerda quer que o Estado passe a depender menos do setor privado na resposta às necessidades de saúde da população. O projeto de lei para rever a lei de bases da saúde, que atualmente diz que o Estado deve promover o desenvolvimento do setor privado, esteve hoje em discussão no parlamento mas baixou à especialidade sem votação. Em setembro, deverá dar entrada no parlamento o projeto do governo. A versão inicial da proposta, desenhada por uma comissão presidida pela socialista Maria de Belém Roseira, também defende que é preciso acabar com o ponto da lei que diz que o Estado deve promover a concorrência com o privado, mas admite que a complementaridade é incontornável quando o Estado não dá resposta a tudo ou não dá resposta a tempo atempado à população.

Qual é mesmo o peso do privado na resposta do SNS?

O último relatório de acesso ao SNS disponível – referente a 2016 – dá algumas luzes sobre a dimensão dos cuidados assegurados pelo Estado que acabam por estar dependentes de operadores privados.

Atualmente, existem quatro hospitais que operam no modelo de parceria público-privada, que os partidos à esquerda pretendem proibir passando todos os hospitais do SNS para gestão pública.

Estes quatro hospitais representam uma despesa anual na casa dos 500 milhões de euros, quer nos contratos de gestão quer nos contratos que remuneram os parceiros privados pela construção e manutenção dos edifícios. No total, o SNS tem 50 instituições hospitalares, pelo que as quatro PPP representam uma minoria dos hospitais do SNS, embora unidades como Braga ou o Beatriz Ângelo estejam entre as maiores do país. Os hospitais do SNS, no global, têm anualmente uma verba de 4 mil milhões de euros para funcionar. Em termos de eficiência, as PPP gastam menos ou mais do que os hospitais com gestão pública? O site de benchmarkting da Administração Central do Sistema de Saúde permite ter uma ideia: por exemplo o Hospital de Braga é o mais eficiente no grupo dos hospitais da mesma dimensão no que toca aos custos operacionais por doentes-padrão. A PPP de Vila Franca de Xira não é a melhor mas também não tem o pior desempenho do seu grupo neste indicador. Cascais e Beatriz Ângelo não surgem na análise.

19,9 requisições de análises, exames e tratamentos aviadas no setor convencionado

Além da entrega de gestão a privados, prática residual no SNS, existe o sistema convencionado que assegura a realização de análises, exames mas também de tratamentos como fisioterapia. No que toca a estes meios complementares de diagnóstico e terapêutica feitos no particular mas com comparticipação do Estado, é possível obter dados mensais no Portal da Transparência do SNS. No ano passado, houve um total de 19,9 milhões de requisições aviadas em entidades convencionadas, que representaram uma despesa de 401 milhões de euros.

Em 2016, a despesa com o setor convencionado, analisada no último relatório de acesso ao SNS, tinha sido de 393,7 milhões de euros. Mais de 40% da despesa tem a ver com a realização de analises clínicas, seguindo-se os exames de radiologia (2%) e a medicina física e reabilitação (19%). Uma área em que estava a aumentar o recurso ao privado era para realização de colonoscopias.

Outra área em que o Estado depende do privado e não entra nestas contas é a hemodiálise: em 2016, 89% dos doentes que precisavam deste tratamento eram encaminhados para unidades do setor convencionado.

O Estado também recorre ao privado quando não consegue dar resposta atempada ou adequada a doentes à espera de cirurgia. Em 2016, cerca de 7 em cada 100 operações de doentes do SNS tiveram lugar em hospitais protocolados ou convencionados. Ainda assim, o número tem estado a baixar.

SNS só tem 190 das camas da Rede Nacional de Cuidados Continuados

Por fim, a atual Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, com respostas para doentes em recuperação e que precisam de assistência médica fora do contexto hospitalar, também depende essencialmente de convenções, a grande maioria acordos entre o Estado e m Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS). Em 2016, representavam 80% do total de acordos celebrados, sendo responsáveis por 6.236 de um total de 8112 camas. Entidades privadas com fins lucrativas eram responsáveis por 1.686 camas (18%) do total. Já na esfera do SNS existiam apenas 190 camas da RNCCI no final de 2016.

A proposta do BE não elimina a relação com o privado, mas pretende um reforço da resposta na esfera pública e que o setor privado seja “supletivo”. O Bloco aponta para uma despesa anual de 1200 milhões de euros com PPP e convenções que poderia ser canalizada para financiar e reforçar o SNS. A direita fala de uma visão ideológica, que não responde as necessidades da população. “O povo não se cura com ideologias", sublinhou ontem o deputado social-democrata José de Matos Rosa.

Em entrevista ao i no início do ano, o deputado João Semedo, co-autor da proposta do BE que agora baixou à discussão na especialidade no Parlamento, admitia que a internalização da resposta no SNS não poderá ser um processo imediato, mas é possível. “Há áreas em que seria fácil e rápido proceder à internalização de serviços e cuidados no SNS, por exemplo, as análises clínicas. Há suficiente capacidade instalada no SNS para isso, é tudo uma questão de decisão política e, depois, de organização e articulação de serviços. Noutra áreas será preciso mais tempo mas, em duas legislaturas, uma política consistente e coerente com esse objetivo conseguiria internalizar quase tudo o que nos últimos anos o SNS entregou aos privados”, disse na altura.