O desinteresse pela política…

Ao mais alto nível do Estado, combina-se um calendário de presenças nos estádios do Mundial ou diante de ecrãs gigantes   

Os dados do Inquérito Social Europeu, reportado ao período 2002-2014, revelam que os portugueses são, entre os europeus, os que menos interesse revelam pela política (38,4%), com o Algarve no topo desta apatia (67,6%). 

Os resultados são elucidativos, e é de presumir que o próximo estudo não melhore a situação, tanto mais que Portugal regista a percentagem mais elevada de inquiridos a responderem que a política lhes parece tão complicada que não percebem verdadeiramente o que se está a passar (42,8%).

Outro indicador significativo é o que coloca os portugueses entre os que exprimem maior dificuldade em tomar uma posição política (52,3%). 

Piores do que nós, na tabela da confiança política na Europa, só a Itália, Grécia, Chipre, Ucrânia e Rússia. Não é lisonjeiro. 

Quando é perguntado: «Qual o seu grau de confiança nas seguintes instituições», numa escala de zero a 10, observa-se: Parlamento nacional, 3,4; sistema judicial, 3,8; políticos, 2,2; partidos políticos, 2,1. É desanimador.

Estes e outros dados, que ilustram de um modo sombrio a relação dos portugueses com a política, são tratados num oportuno artigo assinado – com inquieta objetividade – pelo sociólogo Rui Brites, um investigador que se tem dedicado ao estudo destas matérias.  

Ao que parece, os portugueses não mudaram muito, e continuam fieis àquela máxima que ‘envelheceu’ no Estado Novo, segundo a qual «a minha política é o trabalho»…

Este distanciamento gera, logicamente, um grande acriticismo, explorado com sabedoria e pouco pudor pelos nossos principais atores políticos.

Ao contrário do futebol – domínio onde os portugueses agravaram a sua dependência, tocando já as margens do patológico –, a política é seguida com relativa indiferença e prejuízo para o exercício da cidadania, entreabrindo a porta a todos os populismos.  

Num ensaio saído há poucos meses sobre a ‘Qualidade da democracia em Portugal’, assinado por outra investigadora – Conceição Pequito Teixeira –, desenha-se um cenário deveras preocupante a partir dos resultados cruzados de vários inquéritos nacionais. 

Os inquiridos (entre 2008 e 2014) revelam uma forte inclinação por «um Governo de líder forte» (50%) e por um «Governo de especialistas» (67%). 

Ao detetar esta tendência, a investigadora conclui que «o facto de metade da população ter uma atitude favorável relativamente à possibilidade de um Governo de um líder forte, que não preste contas da sua atuação ao Parlamento nem seja responsabilizado através do controlo popular eleitoral, não pode deixar de suscitar legítima apreensão e aturada reflexão». 

Ou seja – como reconhece a investigadora –, o apoio à democracia em Portugal é ‘difuso’, quase meio século volvido sobre o 25 de Abril, contaminado pela aparente simpatia por modelos autocráticos protagonizados por «homens providenciais».  

A histeria à volta do futebol e a tudo que gravita à sua volta, desde as transferências milionárias até às crises e às intrigas de bastidores, constitui um poderoso narcótico que entorpece o interesse pela cultura social e cívica. 

As zaragatas, dentro e fora dos relvados, sobrepõem-se à reflexão urgente sobre os verdadeiros problemas, desde o estado crítico do Serviço Nacional de Saúde aos efeitos da pesada dívida pública (e da comprovada fragilidade do sistema financeiro), passando pela corrupção em larga escala e pela crónica inoperância da Justiça. 

Mas tudo parece irrelevante quando, ao mais alto nível do Estado, se combina e articula um calendário de presenças nos estádios do Mundial – ou diante de ecrãs gigantes, entre os emigrantes ou no Terreiro do Paço –, como se não houvesse limites para a festa.

Este upgrade institucional tem que se lhe diga. Há dois anos, Mário Centeno apareceu feliz na reunião do Eurogrupo exibindo um cachecol da Seleção campeã.

Desta vez, logo no jogo de estreia com a Espanha, Marcelo Rebelo de Sousa não resistiu também ao cachecol no Terreiro do Paço. Nem ao abraço à mascote do Mundial, na chegada a Moscovo. Excessivo.  

Seria um exercício curioso imaginar o que diria Marcelo, enquanto comentador televisivo que não poupava adversários nem correligionários, se algum Presidente da República que o antecedeu tivesse feito o mesmo, prodigalizando ‘afetos’ e selfies desde a Feira do Livro às Marchas na Avenida.   

Tudo se passa como se não houvesse ameaças no horizonte – a começar pela ‘torneira’ do BCE – e vivêssemos numa economia blindada aos efeitos das ressacas dos vizinhos. 

Portugal transformou-se num estádio, entregue a uma imparável cascata de eventos cujas coreografias são pensadas para serem hipnóticas. Um Estado deprimente, onde se costuram sombras por detrás das luzes.