A Lucília

Nascida no Barreiro, era uma mulher de esquerda, mas não se abria muito sobre isso – talvez por saber que eu não navegava nessas águas. As críticas que me fazia eram mais pelo silêncio do que pelas palavras.

Pouco depois de chegar ao  Expresso, em princípios de 1983, assumi a direção do jornal. Tinha acabado de fazer 35 anos. E ‘herdei’ do tempo de Marcelo Rebelo de Sousa e Augusto de Carvalho, meus antecessores, não uma mas duas secretárias. Duas secretárias de carne e osso, entenda-se: a Lucília Santos e a Paula Calisto.

No ateliê de arquitetura donde vinha eu não tinha secretária pessoal (havia uma única secretária que apoiava todos os arquitetos), pelo que uma das minhas primeiras preocupações foi arranjar trabalho para as duas secretárias que passava a ter. Precisava de inventar tarefas úteis capazes de as ocupar. 

Quem passou a apoiar-me diretamente foi a Lucília, pois a Paula dava aulas de manhã numa escola de hotelaria e estava em part-time. Só aparecia depois do almoço, sempre esbaforida. Mas uma e outra introduziram-me no jornal e contaram-me histórias pitorescas passadas lá, envolvendo sobretudo Marcelo: as suas tropelias, as suas diabruras, as suas loucuras (como andar em pé por cima das mesas a ditar dois artigos ao mesmo tempo).

Como Balsemão defendia que os diretores usassem as secretárias também para assuntos de natureza particular, de modo a poderem dedicar-se por inteiro ao jornal, a Lucília conhecia toda a minha vida – o que também me impedia de pôr o pé em ramo verde… 

A Lucília Santos era uma mulher de estrutura robusta, com uma voz muito bonita: doce, suave e ligeiramente rouca. Não podia ter filhos mas tinha uma forte vocação maternal, o que a levou a adotar um menino – o André – que era impossível ser mais parecido com ela. Ninguém diria que era adotado. Não me lembro, aliás, de nenhuma criança mais parecida com a mãe do que aquela. 

Nascida no Barreiro, a Lucília era uma mulher de esquerda, julgo que simpatizante do Partido Comunista, mas não se abria muito sobre isso – talvez por saber que eu não morria de simpatia pelos comunistas. As críticas que me fazia eram mais pelo silêncio do que pelas palavras. Um dia, depois do  célebre confronto entre polícias no Terreiro do Paço que ficou conhecido como os ‘secos e molhados’, estranhou eu não colocar qualquer referência ao assunto na capa do Expresso. Perguntou-me: «Não põe nada sobre os secos e molhados?». Expliquei-lhe que, como ela sabia, privilegiava na 1.ª página a surpresa e as notícias exclusivas. Ora a notícia estava em toda a parte, e sobre ela não tínhamos quaisquer novidades. Ela não respondeu e com esse silêncio disse tudo. Acho que acabei por mudar mesmo a capa e inserir uma referência ao caso. Talvez uma fotografia.

A Lucília era uma incondicional admiradora de António Moreira Antunes (o cartoonista ‘António’) – e quando o cartoon dele chegava à redação, invariavelmente atrasado, quase em cima do fecho, vinha mostrar-mo com orgulho, como se fosse também um pouco dela. E António retribuía-lhe a amizade, indo ambos almoçar ou jantar com regularidade.   

A sua vocação maternal levava-a a ser uma espécie de mãe adotiva dos jornalistas, sobretudo daqueles com quem tinha mais afinidades. Recordo um episódio caricato passado na redação do Expresso. Um dia Vicente Jorge Silva, o responsável da Revista, entrou-me possesso pelo gabinete dentro. Acontecera qualquer coisa que o pusera furioso. Tinha a cara vermelha como um tomate, parecendo à beira de explodir. Então a Lucília abriu a janela do meu gabinete, ambos agarrámos no Vicente pelos ombros e ‘defenestrámo-lo’ – pondo-lhe a cabeça de fora, para apanhar ar. E só o deixámos sair dali quando ficou mais calmo. 

Quando me veio comunicar que tinha aceitado o convite do Vicente Jorge Silva para fazer parte da equipa fundadora do Público, terminou a conversa assim: «Uma coisa lhe garanto: não serei secretária de mais ninguém. O José António foi o meu último chefe». E cumpriu. No Público, pelo que me contaram, foi uma espécie de governanta, ou de mãe adotiva de toda a redação.

A Lucília partiu esta semana. A Paula Calisto já tinha partido, há três anos. Ambas eram mais ou menos da minha idade: a Paula um ano mais nova, a Lucília dois anos mais velha. As minhas recordações do Expresso vão ficando cada vez mais esbatidas.