Portugal-Irão. A noite em que o amanhã perdeu o til

Até perto do fim, o golo mágico de Quaresma deixava a seleção nacional no primeiro lugar do grupo. Em segundos, passou de Moscovo para Sochi, da Rússia para o Uruguai

SARANSK – Pirro, aquele general macedónio que ganhou um adjetivo graças aos seus sucessos no campo de peleja que assentavam mais nos ventos da fortuna do que na sua sagacidade militar, terá dito no final da Batalha de Heracleia: “Mais uma vitória como esta e estamos perdidos”. Eu, por meu lado, diria que o jogo de ontem em Saransk ficou definitivamente marcado pela nossa vitória meio pírrica de Moscovo, frente a Marrocos, de tal forma que seria extremamente improvável que Fernando Santos não fizesse alterações no onze inicial. Fez. Até certo ponto, está-lhe no sangue. Raramente repete uma equipa em dois encontros consecutivos. Não se encontre nisto uma crítica gratuita. Facto, apenas facto.

O fanatismo dos iranianos é por demais conhecido e não passa despercebido. Os tímpanos de todos nós, ali sentados na bancada de imprensa, com uns milhares largos de buzinas a espinafrarem-nos os nervos, que o digam sem necessidade de análise clínica. À medida que o apito inicial do paraguaio Caceres se aproximava, nuvens negras acumularam-se sobre a Arena de Mordóvia. Mas o futebol não se interpreta com base em presságios. Nem o destino dos homens. Aliás, consta que estava uma manhã luminosa em Hiroxima no dia da bomba e de nada serviu aos que deram graças por uns fiapos de sol. A despeito da turbamulta persa, a verdade também tem que ficar sublinhada a giz branco na lousa negra: o centro das atenções estava em Ronaldo, que vive um momento deslumbrante, imaculado como uma zinco-gravura.

Sendo obrigados a ganhar, restava perceber se os homens de Carlos Queiroz iriam expor sobre a relva aquele desplante encerado a orgulho que vimos na segunda parte do confronto com os espanhóis. Aceitemos que entraram no jogo com o descaramento divino que tanto agradava ao nosso Eça.

E digo-vos: o estádio tremia, abanava, oscilava como um navio em mar alteroso. Não se contentavam com os gritos histéricos nem com as buzinas encanitantes. Desferiam patadas no betão com a ferocidade dos cascos dos cavalos dos exércitos de Assurbanipal.

E o jogo era rijo, firme, sem excluir a dureza. Ninguém fazia cedências no regateio por meio metro de terreno. As oportunidades de golo não surgiam, mas o futebol era tudo menos burocrático ou entediante. E os olhos dos jogadores do Irão brilhavam de um empenho tão intenso que, mesmo à distância, era possível ver neles jactos eletrizantes de luz.

Ao contrário do que acontecera frente a Marrocos, desta vez Portugal teve bola. Podia não ter voz, abafada por toda aquela gritaria de bulir com os nervos como rajadas de vento nas agulhas dos pinheiros, mas percebeu desde cedo que tinha de ir ao fundo da alma procurar o talento para fugir àquele lugar cinzento que fica ali, por entre a nuvem e a sombra.

E talento tem Quaresma, a rodos: em cima do intervalo, o seu remate desafiou a geometria euclidiana do tempo da mestra palmatória. A bola, oblíqua, provocaria aneurismas a qualquer guarda-redes. Beiranvand não percebeu o que lhe estava a acontecer. Continuou, pela noite fora, a não perceber. Nunca na vida perceberá.

 

Sofrimento. Mandava a objectividade dizer que o empate já nos servia. Só que a noite não parecia prometer nem tranquilidade nem conforto. O Irão tinha descaro suficiente para surgir com quatro homens junto da área portuguesa, Azmou mais fixo, Jahanbakhsh pela direita, Taremi pela esquerda, e Ebrahimi num de trás para a frente de ondas a rolar na areia da nossa ocidental praia.

Há que, com a vantagem adquirida, compreender a situação e interpretá-la. Ir ao encontrou da estratégia dos xadrezistas de talento robusto, impedir que a emoção tome conta dos filamentos dos nervos e invada o coração. Ronaldo entra pela defesa contrária despetalando flores, diria Vinicius, e o penalti televisivo pode acabar de vez com a dúvida metódica que paira ainda sobre minutos que se acumulam nos ponteiros do relógio.

O duende abandona o pé direito de Ronaldo no remate previsível.

O Irão redobra de entusiasmo, o ambiente é inacreditável, a Arena de Saransk parece transformar-se num vulcão incandescente. Quem explica a estes loucos já enrouquecidos de amor pátrio que tudo se mantém na mesma na contabilidade seca dos pontos acumulados? Com a Espanha empatada no enclave teutónico de Kaliningrado, Portugal está na frente do grupo, é a Rússia que nos espera, em Moscovo.

A crença iraniana não é, afinal, inesgotável como se temia. A equipa recua, dá a sensação que vai perdendo, a pouco e pouco, alguns daqueles pulmões e corações que a faziam ir além do impossível. Será? Portugal domina os acontecimentos, vai tirando proveito de algum desnorte adversário, mas é curto, demasiado curto. Chega a tornar-se penoso, desconfortável, para quem ergue o título de campeão da Europa como um facho a arder na noite escura. Conta-se, com escárnio, que no tempo da velha União das Repúblicas Socialistas e Soviéticas, se fabricava um relógio chamado Cyma que só trabalhava garantidamente durante sete minutos. Estão decorridos setenta e sete de uma partida que parece, agora, decidida.

Espera-se ainda por Ronaldo, mas ele está preso por argolas de aço invisíveis que lhe emperram os tornozelos. A luta tomou conta do relvado, há confrontos e quezílias, os iranianos retomam a sua fantástica capacidade de ir além, de ir sempre além, até para lá de Teerã, cantaria o Caetano Veloso. Novo penalti televisivo põe-lhes o empate nas mãos abertas que rezam e devolvem-lhes um arranque final que faz tremer de alto a baixo os alicerces da seleção portuguesa. O tique-taque pára, subitamente.

Há um amanhã para Portugal, será em Sochi, perante o Uruguai, quando a Espanha, num gesto de dignidade ao arrepio das esperanças marroquinas, faz o segundo golo e empata e jogo e o primeiro lugar do grupo. O golo que faz a diferença. Tristemente, o amanhã de Portugal perdeu o til…