O Porto em foco

Agostinho Ricca (1915-2010) um compromisso inteligente para construir cidade

Falar de Agostinho Ricca é falar de um Porto que se afirma enquanto cidade. Um Porto-Cidade materializado em projetos que são obra feita, com usos e memórias em benefício de uma metrópole viva e habitada, multifacetada e integradora, harmoniosa nas escalas e nas suas múltiplas funções. Num tempo em que a cidade se transforma, se modifica a partir de modelos esquemáticos, redutores e fachadistas na forma e na complexidade, a obra de Agostinho Ricca permite-nos ver e interagir de forma crítica.

Arquiteto empenhado no Movimento Moderno, vai acompanhando as contradições e as redundâncias, as crises e as mudanças desse mesmo movimento. E neste contexto histórico compreende a necessidade de superar alguns dos obstáculos impostos pelo movimento moderno a nível internacional – através da afirmação do desenho, da expressividade, da luz e da poética dos detalhes construtivos dos novos materiais que utiliza nas suas obras.

Agostinho Ricca faz-se arquiteto com uma arquitetura na (e para a) cidade. Num país que vive em profundo anacronismo estético e ideológico, ancorado ainda numa estrutura social e política pré-moderna, que não aceita e até repudia as gerações novas, que persegue e exclui as utopias sociais. Um país que recusa o ‘novo’ da modernidade e se refugia na identidade e na memória em função de uma pátria que já não era de Junqueiro nem de Álvaro de Campos. Lá fora o tempo era de mudança e de esperança, de inovação e de criação.

Neste vértice de crise da modernidade, o arquiteto vai confrontar-se com um pensamento moderno já dominado por problemas e contradições. Contradições que estão na origem da sua transformação como homem e como arquiteto. Manuel Mendes, no estudo que desenvolve sobre o projeto para uma Casa em Fernão de Magalhães, ano de 1945, dá conta do duro constrangimento portuense, o grito do homem moderno.

O arquiteto e a sua obra dialogam com a cidade, com a rua, com o lote, com as pessoas, com a malha urbana que se quer densa e competente. Faz do desenho uma aproximação ao lugar e ao sítio. O desenho é um traço que liga a cidade nova com a cidade velha, a cidade que se constrói com a cidade consolidada e histórica. O projeto é um instrumento ao serviço da harmonia, da simplicidade e da integração das massas e dos volumes. 
A arquitetura de Ricca permite ao homem experienciar outras interações espaciais, com a criação de cenários de grande intensidade social e simbólica, como é o caso do Parque Residencial da Boavista – também designado por ‘Foco’ (anos 60 e 70). 

Com este plano, a zona da Avenida da Boavista ganha transversalidade urbana, ganha contextualidade e sentido poético enquanto espaço de novas interações sociais, culturais e económicas. Estamos perante um conjunto diversificado de edifícios que fundam um lugar de vida que permite uma articulação inteligente entre a natureza do sítio e a proposta arquitetónica, que consolida o emergente e o difuso, que congrega o fragmento no absoluto que se faz cidade.

Sem dúvida que a construção nos remete para os padrões do movimento moderno. No entanto, a conceção global, organizada em função da natureza topológica do terreno, das vias emergentes onde se integra, como o poderoso eixo da Avenida da Boavista, conferem-lhe uma evidente influência que leva o arquiteto a uma libertação dos princípios ortodoxos do modernismo. Assim, há uma noção de espaço mais organicista, onde o detalhe, o ritmo, a harmonia dos volumes, o modo como se abre e se esconde à Avenida da Boavista, o desenho e a implantação dos vários edifícios, a diversidade das escalas e as aberturas que estabelece com os novos eixos viários conferem-lhe um forte sentido antropológico, onde o diálogo e a abertura, a simplicidade e a leveza são uma constante. 

Agostinho Ricca é assim um arquitecto-filósofo, construtor de cidades imaginadas. Sensível ao cosmos onde habita e atento ao mundo que o estimula a criar e a pensar a arquitetura na cidade. Uma cidade que é de todos mas que também é a ‘sua cidade’. A sua obra, a sua dimensão cívica e intelectual é sem dúvida de enorme valor poético e estético, político e cívico, para compreendermos a cidade e o papel da arquitetura na transformação histórica da cidade do Porto. 

Fernando Matos Rodrigues
Antropólogo. Director do Lahb e Investigador no CICS.Nova_UM