Sónia – das sombras do passado ao Sol do presente

Sónia é uma jovem na casa dos trinta anos que acompanho regularmente no centro onde trabalho, já lá vão uns anos. Ao fim de algum tempo de nos conhecermos melhor, falou-me do seu passado – como que a pedir ajuda para problemas que carregava desde a infância. Deixei-a falar e ouvi-a talvez com mais coração…

Sónia é uma jovem na casa dos trinta anos que acompanho regularmente no centro onde trabalho, já lá vão uns anos. Ao fim de algum tempo de nos conhecermos melhor, falou-me do seu passado – como que a pedir ajuda para problemas que carregava desde a infância. Deixei-a falar e ouvi-a talvez com mais coração de pai do que como médico de família. 

Fiquei um pouco embaraçado com as suas revelações, mas empenhei-me no seu caso, dedicando-lhe a melhor atenção. Sónia queria à força ver a paternidade reconhecida (sempre negada até então), pois fora criada pela avó materna, uma vez que tinha sido abandonada pelos pais. 

Sua mãe, ‘mulher da vida’, terá engravidado acidentalmente (?), e o seu pai, por não querer ser identificado – dado ser casado e se tratar de uma figura pública -, foi ‘comprando o silêncio da mãe’, mantendo a sua ‘aventura’ no anonimato e rejeitando a filha. 

A criança foi crescendo, transportando consigo o desejo legítimo de conhecer os seus progenitores, desejo esse que ia alimentando ano após ano, à custa de muito sofrimento. Em cada encontro comigo falava-me do assunto, recordando esse passado sombrio que a marcara profundamente. Quantas vezes lhe ouvi dizer: «Que devo fazer?». «Acha que faço bem em reabrir o processo de paternidade?». «Não tenho o direito de conhecer os meus pais?». 

A minha posição não era fácil, mas em nome da confiança que ela em mim depositou nunca virei costas às exigências deste aliciante desafio, que se prolongou durante anos. Basicamente, ouvi-a, emitindo o meu parecer com a devida reserva, numa atitude psicoterapêutica, com a consciência tranquila de ter feito o meu melhor. Tê-lo-ei conseguido?

Analisando o problema em todas as suas vertentes, identifico três pontos essenciais. 

O primeiro tem que ver com as origens de cada um. Independentemente do passado mais ou menos marcante, qualquer pessoa, mesmo afetada por uma infância ingrata e difícil, pode vir a ser um adulto normalíssimo, com uma carreira profissional brilhante e uma vida familiar saudável e feliz. Este caso é a prova disso mesmo.

Outro ponto da maior importância tem a ver com a confiança – no fundo, a base da relação médico-doente, conforme tenho referido nos artigos anteriores. Não adianta manter qualquer relação entre duas pessoas se alguma delas perder a confiança na outra. Da mesma forma, em Medicina Familiar não pode ser imposto a um doente um médico em quem o doente não confie, tal como um médico tem o direito de se recusar a acompanhar um doente que não aceita (ou põe em causa) as suas decisões. Este caso melindroso mostra inequivocamente que houve uma confiança incondicional no médico, bem como na estratégia montada para o efeito.

O terceiro aspeto prende-se com a orientação a dar a um caso deste género. Está na ‘moda’ dizer que estas situações devem, sem exceção, ir parar às mãos dos psicólogos, as únicas pessoas capazes – e mais indicadas pelas novas correntes de opinião – de acompanhar estes ‘doentes’.

A Psicologia é importante sem dúvida, e uma aliada da Medicina Familiar, mas não se pode fazer dela a solução de todos os problemas. Nem encaminhar para lá indiscriminadamente qualquer situação dessa área sem uma prévia avaliação clínica, muito menos por imposição dos familiares ou sugestão de amigos, quando o próprio não sente essa necessidade. É preciso deixar na mão dos médicos a capacidade de decisão de referenciar para a Psicologia só quando houver indicação – e sempre com o parecer concordante do doente.

Sónia conseguiu finalmente encontrar a mãe e chegar à fala com ela. Quanto ao pai, só falou com ela uma vez pelo telefone e procura evitá-la a todo o custo. 

O mais importante é que esta jovem é hoje professora, mãe de um rapaz, o Filipe, casada com um engenheiro, bom pai e bom marido. 

Ambiente familiar saudável, família nuclear normal muito unida, onde brilha um sol radioso que vai atenuando recordações sombrias dos tempos que já lá vão. O Filipe é a alegria daquela casa – e de vez em quando vem fazer-me uma visita, pois gosta que eu lhe pegue ao colo.

Fica aqui a minha homenagem às Sónias da nossa sociedade, tantas vezes ignoradas e abandonadas. Nos nossos dias, quando a Medicina tende a seguir outros caminhos, são desafios destes que nos fazem sentir ‘o orgulho de sermos médicos’ e ouvir aquela voz como que a dizer-nos baixinho: «Valeu a pena!».

(Por se tratar de um caso verídico, os nomes das pessoas envolvidas foram alterados).