O que é bom na Europa pode não ser no Mediterrâneo

Enquanto os líderes europeus festejavam um acordo tíbio que exportará o problema para África, a guarda-costeira líbia anunciava o afogamento de cem pessoas na travessia para a Itália.

O que é bom na Europa pode não  ser no Mediterrâneo

O entendimento europeu da madrugada de ontem coincidiu quase milimetricamente com a notícia de que cerca de cem pessoas morreram afogadas esta semana ao largo da costa líbia, o trajeto mais perigoso para as novas chegadas à Europa e, desde que a Turquia interrompeu a ligação à Grécia, também o mais popular. O naufrágio foi anunciado pela Organização Internacional para as Migrações (IOM) na madrugada de ontem. Flavio Di Giacomo, porta-voz, adiantou que o número de vítimas é uma estimativa, pode ser superior à centena e afirmou que se encontraram já três cadáveres de crianças. «Salvar vidas no mar é a prioridade número 1: ainda precisamos de TODAS as embarcações de salvamento no Mediterrâneo», escreveu. 

O naufrágio desta semana trata-se de um dos mais mortíferos acidentes do ano no Mediterrâneo. É também um indício dos riscos que existem na nova estratégia europeia de exportar as operações de salvamento marítimo e até mesmo do controlo de fluxos migratórios para as zonas de partida das embarcações, em Marrocos ou na Líbia, por exemplo. Os líderes europeus aprovaram ontem um texto no qual advertem as organizações com navios no Mediterrâneo a «não obstruir» as operações da guarda costeira líbia, a quem Bruxelas promete agora novos meios, mais fundos e independência. Em vários aspetos trata-se de uma solução idêntica àquela que foi encontrada pelos Vinte e Oito com a Turquia: pagar para conter o problema margem mais distante. 

As duas agências das Nações Unidas diretamente ligadas às operações de resgate no Mediterrâneo – a IOM e a ACNUR – felicitavam ontem um entendimento europeu que pode distribuir refugiados por pontos de acolhimento comunitários, mas condenavam também a nova política de exportação de responsabilidade para países que não oferecem garantias humanitárias. Assumiam uma postura semelhante à dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), uma das mais importantes organizações de resgate no Mediterrâneo, que ontem condenava mais estridentemente o facto de os líderes europeus estarem hoje mais dispostos a enviar migrantes para um país com leilões de escravos do que aceitar as suas embarcações com pessoas resgatadas – em dezembro do ano passado, a CNN obteve gravações de um leilão na Líbia de migrantes africanos. 

«O que aqui é novo é o facto de as guardas costeiras italianas e maltesas estarem agora a lavar as mãos por completo em relação ao que está a acontecer no mar», afirma Hassiba Hadh-Sahraoui, conselheira de Assuntos Humanitários para os MSF, em declarações ao Guardian. Segundo diz, a política europeia de entregar embarcações de migrantes às guardas costeiras africanas começou há já uma semana, data em que as autoridades italianas deixaram de coordenar o movimento das embarcações de resgate no Mediterrâneo. Segundo diz Hadh-Sahraoui, os MSF continuarão a não entregar migrantes resgatados no Mediterrâneo às autoridades líbias, mesmo que isso implique andar à deriva e ao largo das costas italianas encerradas, como aconteceu há duas semanas com a embarcação Aquarius. «Queremos continuar com as operações, mas se isso nos forçar a ser agentes das suas políticas e a entregar pessoas à Líbia, não o aceitaremos».