Para uma Carta da Habitação do Porto!

Carta escrita por redactores e subscritores  da Carta da Habitação do Porto

Por F. Matos Rodrigues / Manuel Carlos Silva / A. Cerejeira Fontes / Diana Silva

A Carta para uma Habitação do Porto foi aprovada por unanimidade em 30 de Junho passado, depois de apresentada, discutida e reformulada em texto final num seminário realizado no Porto, centrado no modo como garantir o direito à habitação na cidade do Porto e, deste modo, impedir os despejos, as deslocações e o empobrecimento social e demográfico da cidade do Porto. Esta Carta foi subscrita pelos partidos com assento na Vereação e Assembleia Municipal do Porto, e que aceitaram participar neste seminário: o PS, a CDU, o BE e o PAN bem como pelos representantes de várias associações de moradores das ilhas da cidade, estudantes, proprietários e inquilinos, investigadores e professores de várias instituições nacionais e internacionais.

Entre os impulsionadores iniciais da Carta da Habitação estiveram membros do Laboratório de Habitação Básica (Lahb), o coordenador do projecto de investigação “Modos de Vida e Formas de Habitar: Ilhas e Bairros Sociais no Porto e em Braga” (cf. PTDC/IV/SOC/4243/2014), integrado no Centro Interdisciplinar Ciências Sociais da Universidade do Minho (CICS.Nova_UM) e as Associações de Moradores da Ilha da Bela Vista, Tapada e Riobom, tendo contado também com a colaboração da União de Freguesias do Centro Histórico do Porto.

A habitação é um direito constitucional e um dever de programação, bem como de execução do Estado, cabendo às autarquias a definição de regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, segundo uma política de ordenamento do território e do urbanismo. Neste contexto, a Carta Social Europeia determina que, com vista a assegurar o exercício efectivo do direito à habitação, as partes deverão tomar medidas destinadas a: 1) favorecer o acesso à habitação de nível suficiente; 2) prevenir e reduzir a condição de sem-abrigo, com vista à sua eliminação progressiva; 3) tornar o preço da habitação acessível às pessoas que não disponham de recursos suficientes.

Actualmente, constatam-se diversos entraves à efectivação de tal direito, nomeadamente na cidade do Porto e de Lisboa. Assim, num contexto de crescente valorização de actividades económicas direcionadas para o turismo, beneficiadas financeiramente pelo estado e por fundos comunitários, individual e casuisticamente propostos a projecto; de crescimento exponencial de unidades de alojamento; e num panorama de liberalização de prestação de serviços direccionados para arrendamento de curta duração (ex.: Alojamento Local), verifica-se um aumento elevado do valor das rendas, o que impossibilita as famílias da classe média e média alta, bem como os estudantes universitários a uma habitação na cidade do Porto.

A proposta de uma Carta do Porto para a Habitação vem ao encontro desta necessidade real de habitação em geral, e a custos controlados em particular, num momento de diminuição dos rendimentos do trabalho e da pressão imobiliária sobre o direito à habitação. Perante a oportunidade encontrada por quem detém a propriedade de rentabilização do seu edificado através do uso turístico, que a patrimonialização do Centro Histórico e o aumento de deslocações aéreas internacionais vieram exponenciar, a programação da reabilitação fica longe de medidas gerais de intervenção concertada, remetendo quase exclusivamente para a capacidade individual de cada proprietário. A habitação por arrendamento fica refém desse fenómeno que, ao tornar-se estrutural da produção urbana contemporânea, cria efeitos permanentes de carência habitacional.

No Porto, onde o processo de gentrificação é particularmente evidente – nomeadamente nas freguesias do Bonfim, Campanhã e Lordelo do Ouro – são já notórias as consequências directas sobre os moradores, conhecendo-se uma diária expulsão e deslocação forçada. A desregulação do arrendamento e a natureza abrangente da figura de Alojamento Local, que permite destinar habitação própria ou secundária para usos mais convenientes aos proprietários, provocam uma situação de desprotecção de uma grande maioria dos inquilinos da cidade. Considerando as limitações que os diferentes quadros jurídicos de apoio à reabilitação e ao realojamento têm vindo a demonstrar por via dos efeitos de liberalização do despejo pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), revela-se urgente a conjugação de forças para a defesa e recuperação da habitação enquanto necessidade e direito dos cidadãos/as.

Em suma, torna-se evidente que a liberalização do mercado imobiliário, sustentado pela publicação do NRAU, em 2012, coincide com a necessidade de aumentar a rentabilização da propriedade urbana para outros fins que a habitação clássica e regulada não permitia. Por seu turno, a tão aplaudida reabilitação passa tanto por uma alteração superficial de materiais de revestimento, sem atualização de outras infraestruturas necessárias à utilização turística, como pela destruição do miolo da casa, mantendo apenas a fachada do edifício.

A cidade do Porto vive um momento de grande crise habitacional motivada pela pressão especulativa de grandes grupos imobiliários que investem fortemente na reabilitação e no turismo, especulando com os preços por m2 a rondar valores que em nada beneficiam a habitação inclusiva e o direito à cidade para todas as classes e grupos sociais. O problema da habitação é um problema de cidade como parte da produção territorial, da reprodução social e da garantia de direitos essenciais à vida digna, plena e plural para todos. A Carta para a Habitação do Porto considera como objectivo fundamental a adopção de estratégias comprometidas com a salvaguarda desta, considerando não apenas a degradação física do edificado existente, as alterações tipológicas familiares, a terciarização da actividade urbana e o agravamento jurídico da situação do arrendamento, como os processos adjacentes à sobrevalorização da propriedade privada e de outras actividades que ocupam os espaços de residência. 

A Carta da Habitação para a Cidade do Porto vai propor como princípios estruturais a renovação e a qualificação da habitação existente, a promoção de habitação básica, o arrendamento regulado e acessível e a protecção do direito à habitação sobre qualquer circunstância dos inquilinos. Assim, defende a promoção pública e cooperativa da habitação básica, num processo integrado de discussão participada acerca do programa habitacional. A criação de regimes fiscais e regulatórios para a promoção habitacional penalizando os fundos imobiliários que se encontram no Centro Histórico do Porto e estão isentos de pagamento de IMI, independentemente se as habitações estão disponíveis ou não para o arrendamento urbano.

Perante esta situação, importa (i) alargar a promoção da habitação no contexto global do território tendo em conta a reformulação da figura da ARU; (ii) fefinir e viabilizar sistemas de promoção e de financiamento de acesso ao arrendamento e aquisição de habitação própria; (iii) proceder a uma alteração das normas, demasiado rígidas, patentes em normativos como o Regulamento Geral das Edificações Urbanas, de forma a fazer face à necessidade de renovação das Ilhas do Porto; (iv) promover o financiamento da construção para habitação básica na cidade do Porto por via de incentivos como o crédito popular à renovação/reabilitação e ao adquirente; (v) promover políticas de isenções fiscais e nas mais-valias camarárias e outros encargos para quem invista na habitação básica a custos controlados; (vi) promover a regulamentação da utilização do solo urbano, de forma a limitar a especulação no mercado dos terrenos e, desta forma, garantir a disponibilidade de uma bolsa de terrenos a preços razoáveis e em quantidades adequadas à realização de uma política habitacional séria; (vii) promover regulamentação em sede do PDM, de forma a impedir a alteração das condições de usos existentes, bem como o emparcelamento da propriedade na cidade; (viii) promover uma política de socialização dos solos urbanos pela declaração de utilidade pública.

Porto,/Braga, 30 de Junho de 2018