Angela Merkel já não é inevitável

A chanceler alemã, o modelo da estabilidade política europeia, sobreviveu com feridas a uma batalha debilitante. Fechou as portas para salvar o governo e jorrou água fria no seu idealismo.

Angela Merkel já não é inevitável

A política alemã livrou-se de dois cânones de longa data nas duas últimas semanas. O primeiro estabelecia que os conservadores bávaros da CSU inevitavelmente recuariam diante o partido da chanceler depois de este lhe recusar os protestos que normalmente faz em período de eleições locais. Aconteceu em 1976, por exemplo, quando a CSU quase derrubou a aliança exigindo mais tempo no Bundestag. Repetiu-se mais tarde, também, quando os bávaros se mostraram contra uma moeda comum. Desta vez, porém, o CSU não recuou diante o irmão mais velho – a CDU de Angela Merkel. Mesmo depois de Merkel ter arrancado de madrugada um acordo de boa vontade europeu para a criação de centros de triagem, Seehofer não se mostrou satisfeito e exigiu o fim definitivo ao gotejar de aspirantes a asilo. Merkel cedeu esta semana, abandonando, na prática, a sua política de portas abertas. Aceitou a criação de centros de controlo – detenção, dizem os críticos – na fronteira da Alemanha e Áustria para acabar praticamente com todas as entradas de requerentes de asilo. Caiu um segundo cânone: o de que Merkel é inevitável e as alavancas do poder lhe pertencem por completo.

Angela Merkel não saiu derrotada no confronto com Seehofer, mas terminou-o suficientemente machucada para que questione se o Governo que só a muito custo costurou com os social-democratas do SPD aguentará quatro anos. O ícone da estabilidade europeia voltou atrás com a palavra e, acima de tudo, com o ideário que fez valer por força da tenacidade – e prosperidade – no pico das chegadas, em 2015 e 2016. A chanceler aceitou instalar controlos de fronteira e construir centros de triagem para aspirantes a asilo, o que suscita espetros sombrios da História do séc. XX. Os centros, na realidade, não avançarão, mas não graças a Merkel. Pode respirar de alívio graças ao SPD, que na quinta-feira disse a Seehofer que apenas aceitará a triagem de requerentes de asilo nas instalações de polícia já estão construídas, e não em zonas especiais de detenção. Na prática, porém, o resultado é o mesmo. Berlim terá guardas na fronteira, não fechará mais os olhos e não voltará a oferecer asilo a quem já o pediu na costa grega ou italiana, tal como está escrito na lei comunitária. «Merkel permitiu que Seehofer a arrastasse pela arena de uma forma que há poucos anos seria impensável», argumenta Andrea Römmele, da Universidade Hertie, em declarações ao Financial Times. 

Seehofer teme pelos resultados do partido nas eleições regionais de outubro. A CSU perdeu 11 pontos para as legislativas do último ano e dentro em breve pode perder a maioria absoluta na Baviera às custas da ascensão dos nacionalistas da Alternativa para a Alemanha (AfD). O post mortem às eleições de 2017 sustenta que a maioria do eleitorado nacionalista não vem dos velhos partidos conservadores, e pertence, isso sim, à abstenção e aos pequenos partidos. Os conservadores, em todo o caso, perderam eleitores para a AfD, sobretudo na Baviera, a região mais próspera da Alemanha e a mais exposta ao fluxo das novas chegadas. Acima de tudo, os bávaros ressentem o moralismo unilateral de Merkel e o radicalismo do finca-pé de Seehofer nasce daqui. Seehofer alimenta-se também do facto de Viena e Roma se alinharem agora pela mesma bússola antimigração. O ministro consultou o chanceler austríaco antes de avançar a todo o vapor contra a chanceler e garantiu na quinta que não enviará nenhum refugiado rejeitado para o país vizinho. Seehofer reúne-se para a semana com o Governo italiano, que é quem mais tem a perder com o plano das deportações aceleradas, uma vez que, ao contrário da Áustria, se trata de um dos pontos de entrada na UE.

Seehofer conseguiu os seus controlos de fronteira, mas Merkel fez valer na mesma a perspetiva europeia. A Alemanha não deportará nenhum aspirante de asilo rejeitado sem a aquiescência do ponto de entrada. Esta é uma tarefa difícil – praticamente impossível no caso de Itália. Caberá ao próprio Seehofer negociar acordos de repatriamento com os restantes parceiros europeus, o que provavelmente resultará em fracasso, à imagem do plano de redistribuição de refugiados do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker. A derrota de Merkel pode revelar-se apenas um percalço de curto prazo enquanto negoceia uma resposta europeia á crise, como sempre defendeu. Isto, claro, se as fronteiras se mantiverem mais ou menos abertas. Roma e Viena podem alinhar hoje pelo ideário de Seehofer, mas isso não garante vitória ao ministro alemão. Estes países querem garantir que as fronteiras fechadas na Alemanha não resultam em mais refugiados sem destino nos seus territórios. Se Schengen ceder sob o peso dos novos controlos alemães, Seehofer perderá. Merkel, também.