Laura Soveral

1933-2018.  A ‘rainha branca’ do cinema português

Nem o corpo que tantas vidas teve, nem aquele rosto largo e doce, como uma braçada de mar, compareceu na hora da despedida. De tudo o que é terreno se libertou a grande atriz na hora em que recebeu a última flor. Terá sabido que deixava aos vivos outros monumentos mais perenes, e por isso pôde dispensar-se das cerimónias fúnebres, doando o corpo à ciência. Foi o que fez Laura Soveral, num último ato de humildade e generosidade, como a família assinalou. E isto porque, depois de uma carreira imensa, de se tornar uma figura emblemática do cinema português, os últimos anos reservaram-lhe uma outra luta. A atriz sofria de esclerose lateral amiotrófica, doença degenerativa que acabou por impedi-la de aceitar novos convites. Residia na Casa do Artista, tendo recentemente sido internada no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde morreu pouco depois da meia-noite de quinta-feira.

A notícia da morte foi dada pela Academia Portuguesa de Cinema (APC), e o seu presidente, o produtor de cinema Paulo Trancoso vincou a saudade que deixa, como viva «deixava em nós uma sensação de prazer por termos estado com ela». Quanto a títulos, Trancoso não hesita em afirmar que se trata de «uma das nossas imortais». E a secundá-lo esteve o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa: «Não esqueceremos as personagens que nos deixou, altivas como a Maria Prazeres de Uma Abelha na Chuva, comoventes como a Aurora de Tabu, porque foi em Laura Soveral que os nossos cineastas pensaram, quando quiseram que o cinema português fosse moderno», lia-se na mensagem de pesar publicada no site da Presidência.

Acompanhando a trajetória do cinema e da televisão desde a década de 1960, Rebelo de Sousa fala de uma «presença fundamental do cinema português», e destaca ainda outros momentos em que Soveral riscou o céu com a sua fulgente passagem, fosse em Francisca ou Vale Abraão, de Manoel de Oliveira, fosse em filmes de José Fonseca e Costa, José Álvaro Morais, João Botelho e Teresa Villaverde.

Tendo-se estreado como atriz, em 1964, no Grupo Fernando Pessoa, dirigido por João d’Ávila, além da marca que deixou no cinema e na televisão, o Presidente da República fez questão de sublinhar as interpretações de Soveral nos textos de grandes autores como Kafka e Arthur Miller, com o Grupo de Ação Teatral, no Teatro Villaret, em 1970/71. De resto, antes de chegar aos palcos, frequentou Filologia Germânica, na Faculdade de Letras. Acabou por enveredar pela representação depois de fazer o curso da Escola de Teatro do Conservatório Nacional.

Maria Laura do Soveral Rodrigues nasceu em 23 de março de 1933, na cidade de Benguela, Angola. Casou muito nova, foi professora de liceu em Benguela, e, aos 28 anos, separou-se do marido, mudando-se com os três filhos para Lisboa. Acumulando o trabalho com os estudos,  cedo a sua personalidade cativou figuras do primeiro plano da cultura portuguesa, tornando-se próxima de Almada Negreiros, João Abel Manta e Alexandre O’Neill, entre outros. Não demorou também a destacar-se nos palcos, trabalhando com companhias como o Teatro da Cornucópia, o Teatro Experimental de Cascais, o Novo Grupo/Teatro Aberto e A Barraca. Colaborou também em programas de televisão, surgindo algumas vezes em Hospital das Letras de David Mourão-Ferreira, programa em que declamava poesia.

Soveral começou uma relação com José Maria Caetano, filho de Marcelo Caetano, e os dois viriam a estar juntos ao longo de 32 anos, tendo tido uma filha. No pós-25 de Abril, fixaram-se no Brasil, e Laura tornou-se a primeira atriz portuguesa a trabalhar para a rede Globo, com papéis em O Casarão e Duas Vidas. Apesar desta união, no regresso ao país anos mais tarde, a atriz não se viu estigmatizada, sendo aceite por todos os quadrantes da sociedade portuguesa.

A APC distinguiu-a em 2013, com o prémio de carreira e, em 2017, com o Prémio Bárbara Virgínia, de homenagem a mulheres do cinema português. Por essa altura, a academia justificou a homenagem afirmando que Laura Soveral representa «um extraordinário exemplo de determinação e profissionalismo para gerações futuras».

Em 2006, Graça Castanheira realizou para a RTP o documentário Laura, A Inquietação de Estar Viva, esboçando um retrato intimista de «uma atriz maior», e que passa a ser o mais precioso testemunho da «presença notável, a voz audaz e articulada, os traços de recorte distinto, a agilidade precisa dos gestos, a inteligência interpretativa e um talento inequívoco». 

E em jeito de despedida, há uns versos de Vinicius de Moraes que Laura Soveral gravou num disco – Poesia Portuguesa e Brasileira, a meio de um poema chamado Ausência, há muitos anos, ela lia: «Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados/ Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada/ Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado».