Algarve. Onde está a Ria Formosa?

A paisagem continua a cortar a respiração, mas a Ria Formosa já não é o que era. Os assoreamentos estão a pôr em causa os negócios dos habitantes locais, que se queixam da falta de intervenção das autoridades. Mas o ambiente também sai prejudicado

Algarve. Onde está a Ria Formosa?

Quem vem de fora para visitar Cacela Velha não imagina os problemas com os quais a zona se tem vindo a debater nos últimos anos – e que, segundo os habitantes locais, estão a agravar-se. Este inverno não faltaram na região temporais que intensificaram os assoreamentos e que colocam inúmeros obstáculos às atividades aqui desenvolvidas.

Edgar Nunes é piloto do Nova Aurora e está à beira mar, no areal de Cacela Velha, com o barco atracado à espera de poder navegar. O verão ainda agora começou, mas na praia já há banhistas com vontade de ir até à ilha em frente, conhecida como Cacela Velha Mar. Longe vai o tempo, contudo, em que o barco de Edgar era a única forma de lá chegar. «O vendaval do inverno pôs a areia toda aqui dentro do canal da Ria. Isto não tem condições, está tudo assoreado e a gente só mesmo com a maré cheia é que consegue navegar aqui. Quando a maré está vazia, as pessoas acabam por conseguir ir a pé e já não precisam do barco, o que é mau para o negócio», conta ao SOL, apontando para os bancos de areia visíveis entre a água. «Até é perigoso para as pessoas porque arriscam ao passar. Muitas vezes o que acontece é que depois não conseguem voltar», descreve o piloto. Foi isso que aconteceu naquele dia: assim que chegou à praia, teve de salvar logo seis pessoas que estavam num pequeno ilhéu e que não conseguiram voltar porque a maré encheu. Mas na base do problema não estão só os temporais: «abriram uma barra onde não deviam», denuncia.

Entre os banhistas, uma avó que escolheu a praia para passar o dia com o marido, filhos e netos queixa-se de que nada é como dantes. «Venho para aqui há 40 anos e isto está cada vez com mais areia. Isto é tão bonito, é uma pena que não façam nada», defende.


Fotografia de Mafalda Gomes

Mas o negócio do transporte entre ilhas não é o único prejudicado pelos assoreamentos. A parte oriental da Ria Formosa é conhecida pelas ostras e amêijoas que, verão após verão, fazem as delícias dos turistas que frequentam os escassos restaurantes da região – ou melhor, era conhecida. Os assoreamentos enterraram todos os viveiros que por ali existiam, deixando os mariscadores sem sustento e obrigando os restaurantes a procurar fornecedores para encomendar os tão apreciados bivalves.

Patrício Correia, 31 anos, é o proprietário da famosa Marisqueira Casa da Igreja, onde tantas pessoas acorrem atraídas pelas ostras, degustadas nos compridos bancos em madeira. A fama vem já de há 50 anos – o restaurante passou do pai para Patrício e os irmãos –  e aqui as ostras são tão levadas a sério que existe até um utensílio unicamente criado para as abrir, a fazer lembrar um quebra-nozes. «Este já é uma recriação, o original foi o primo do meu pai que trouxe de Espanha e está guardado. A patilha entra na ostra e abre-a», mostra ao SOL, na pequena cozinha da marisqueira. Patrício Correia conhece o problema melhor do que qualquer outra pessoa. Além de ter o restaurante e sentir o prejuízo por já não haver ostras na região – «tenho de encomendar as ostras doutros sítios e é mais um investimento, quando aqui havia cerca de 30 viveiros» -, é também um dos afetados pelos assoreamentos, que enterraram os seus viveiros. «Tenho um viveiro que já é o único aqui e não está a produzir nada há dois anos por causa dos assoreamentos. Entupiu com a areia e como a água não tem passagem não dá para produzir», lamenta. Não percebe o porquê de fazerem dragagens na Fuseta e de nada ser feito aqui, onde também é preciso. 

A indignação é partilhada por Luís, 60 anos, que trabalha na copa do restaurante Casa Velha, logo à entrada de Cacela: «Os senhores que tinham viveiros de amêijoas e ostras foram afetados porque morreu tudo. Abriram a barra e a areia enterrou tudo, deve haver uns dois metros e tal de areia em cima dos viveiros. E agora temos de encomendar de fora. Porque não fazem nada para resolver o problema?». Essa foi uma das perguntas que o SOL fez à Agência Portuguesa do Ambiente, mas, até ao fecho desta edição, nenhum esclarecimento foi dado.


Fotografia de Mafalda Gomes 

Os mesmos problemas pela Ria fora

Mais a ocidente, o areal é mais concorrido – ainda não tanto como noutras regiões algarvias -, mas as queixas são as mesmas. Enquanto dezenas de famílias apanham banhos de sol e as crianças se divertem nas águas límpidas da Ria, há um elemento que desfeia a paisagem idílica. No mar, a meio caminho da Ilha da Fuseta, uma draga retira o excesso de areia do fundo da Ria para compor o areal da ilha. «As tempestades levaram metade da ilha. Deviam era ter começado a dragagem mais cedo, só começaram em maio e isto prejudica quem está de férias porque não pode ir à ilha, que está fechada», diz ao SOL Raul, 23 anos, que passa os dias na sua cabana de madeira, entre pranchas de paddle e de outros desportos aquáticos. A ilha reabriu, entretanto, na última terça-feira. E tal como em Cacela Velha, também aqui, na Fuseta, os problemas começaram quando uma barra foi aberta «onde não devia», recorda Raul.

Mais do que pôr em causa o verão dos banhistas, a acumulação de areia sido um obstáculo também para as populações de cavalos-marinhos. «Tenho reparado que estão a diminuir, o que é uma pena…», comenta.

Mas não são só os cavalos-marinhos que estão em risco. Ao SOL, vários pescadores denunciam que falta polvo. Carlos Alberto está na profissão há 30 anos. Sentado num banco à porta da sua cabana, na aldeia piscatória da Fuseta,  ocupa-se com o ofício dos covos, as redes em plástico usadas para capturar os moluscos. «Põe-se aqui o isco e o polvo entra por este buraco para o ir buscar e já não consegue sair», explica, enquanto segura um exemplar. Fez-se ao mar durante a madrugada, mas pouco lhe rendeu. «O problema são os assoreamentos. Muitos polvos agora vêm de Olhão para a lota da Fuseta», queixa-se.

Problemas e soluções 

Na zona da Ria Formosa há muito por resolver e o SOL quis saber o que está a ser feito pelas autoridades competentes. O Polis Litoral Ria Formosa é um programa criado pelo governo em 2008 com o objetivo de requalificar e valorizar a Ria. O presidente da Sociedade Polis Litoral Ria Formosa lembra que a sociedade vai encerrar a 31 de dezembro. «Estava previsto desde o início o encerramento das polis, e há dois anos o governo decidiu que o encerramento ia avançar», diz José Pacheco. Ainda assim, há vários projetos de requalificação planeados e outros a decorrer: «Parte do cordão dunar na praia do Barril (Ilha de Tavira) está a ser intervencionada e em breve vão ser iniciados os trabalhos de requalificação do núcleo piscatório da Culatra, a construção de uma nova ponte-cais na ilha de Tavira e em outubro deve iniciar-se a obra  de requalificação da marginal de Olhão».

Além dos problemas mais visíveis, há outros igualmente preocupantes que os membros do Núcleo Regional do Algarve da Quercus bem conhecem. Ao SOL, Fernando Dias começa por destacar o problema das construções nas ilhas, que podem pôr em causa os ecossistemas. Mas o responsável está preocupado também com o lixo que, ao mesmo tempo que aumenta, não é separado. «O lixo que é recolhido pelas autoridades nas ilhas não é reciclado e devia ser», alerta. O aumento das empresas de transporte e, consequentemente, dos barcos em circulação na Ria, é outro elemento que tem vindo a preocupar a Quercus. Daí, advém outro problema: a diminuição da espécie de cavalos-marinhos, tão característica da zona. «As autoridades responsáveis pela manutenção da Ria deviam fazer muito mais do que fazem… a Ria já não é o que era», lamenta Fernando Dias.