De alevim a caracoleta. É assim que se produz este petisco

Estamos em plena época de caracóis, caracoletas e afins. Hoje, falamos de caracoletas. Se receitas há muitas – há quem não dispense a manteiga e o limão, outros para quem a pimenta é mandatória -, a verdade é que a verdadeira estrela é mesmo a matéria prima. O b,i. foi conhecer uma das grandes estufas…

De alevim a caracoleta. É assim que se produz este petisco

São hermafroditas, noctívagas e crescem a uma velocidade impressionante, demorando três meses (no verão) ou quatro (no inverno) a chegar ao tamanho ideal para consumo. Podem ainda não fazer frente aos seus primos caracóis – os theba pisana, maioritariamente vindos de Marrocos e que nesta altura do ano enfeitam os pires e travessas um pouco por todo o país – mas já pesam na balança. Falamos da espécie helix aspersa máxima – as caracoletas – cada vez mais consumida no país. Mas se todos teremos mais ou menos em mente como se produzem porcos, galinhas e outras fontes de proteínas, a helicicultura – assim se chama a criação e produção de caracóis – ainda não é assim tão comum, embora nos últimos anos haja um interesse crescente nesta atividade.


Fotografia de Mafalda Gomes

 Inês Azevedo e Ricardo Henriques já eram «consumidores compulsivos de caracóis e caracoletas» antes de se dedicarem à produção. Há três anos, o casal de lisboetas resolveu dar uma volta à vida e apostar em força neste mercado. Em 2015, mudaram-se para as Mouriscas, no concelho de Abrantes, para se tornarem produtores de caracoletas – ou helicicultores. «Fizemos formações em hidroponia, cogumelos, apicultura. Ponderámos até avançar para a apicultura, mas depois percebemos que poderia não ser bem o que estávamos à espera. Depois, a aposta recaiu na helicicultura», conta Ricardo. 

Foram aprender como se produziam caracóis a Salamanca, fizeram outras formações em Portugal, visitaram algumas explorações, concorreram aos fundos europeus e agora, três anos volvidos, gerem uma das maiores empresas de produção de caracoletas do país (em área coberta), pondo no mercado cerca de quarenta toneladas anualmente. «Por ano, metemos na estufa mais de quatro milhões de alevins – a que chamamos bebés – para engordar», explica Inês. «Há explorações supostamente maiores do que a nossa, mas em céu aberto, por isso só funcionam no verão. Termos uma estufa, permite-nos produzir no inverno e no verão», continua Ricardo. Por estes dias, estão em plena campanha da apanha do verão. «No ano passado, na parte de embalar, chegámos a sair às quatro da manhã e a fazer diretas ou 48 horas seguidas», recorda Ricardo. Mas antes de mandarmos as caracoletas para a última fase – o embalamento – recuemos até ao início do processo. 


Fotografia de Mafalda Gomes

Dos alevins às caracoletas 

Isto de produzir caracóis não acontece do dia para a noite. «Demorámos um ano a montar as estruturas», recorda Inês. Para instalarem a estufa de um hectare, o terreno foi terraplanado para que a estrutura estivesse semienterrada no espaço e com uma inclinação impercetível a olho nu, mas que permite que a água da chuva escorra e seja recolhida numa das extremidades. Este ‘truque’ tem duas funções: por um lado, não há inundações tanto dentro da estufa como nos terrenos vizinhos, por outro conseguem que a produção funcione usando apenas as águas pluviais. 

Dentro da estufa, a sensação é a de que estamos a ir constantemente de encontro a uma parede de calor. «Não é dos piores dias», explica Ricardo. «No verão, quando estão quarenta graus cá fora, é impossível trabalhar cá dentro». Assim, e seguindo os horários quase ancestrais do trabalho do campo, Inês e Ricardo começam a trabalhar mal nasce o sol, param durante as horas de maior calor e voltam ao fim da tarde. Neste sentido, o verão é sempre mais duro, até porque os animais se desenvolvem mais rápido e quase em simultâneo, pelo que a apanha da caracoleta tem que acontecer mais rapidamente.

O espaço está divido em recintos – os parques – cercados por telas eletrificadas. Afinal, os caracóis podem fugir e, se tivermos em conta o seu tamanho, não são assim tão lentos. «Andam cerca de cinco metros por noite», explica Inês. E é dentro destes recintos que, duas vezes por ano, os produtores plantam as couves que servem de alimento aos primeiros tempos dos caracóis que ali chegam. «Não fazemos criação, só produção. Isto quer dizer que compramos os bebés a um fornecedor e eles depois vêm para aqui engordar».

Os milhões de bebés -os alevins – chegam ali a pesar miligramas, com uma casca quase translúcida. «Quando vêm para cá, se os tocarmos com um bocadinho mais de força a casca desfaz-se logo», diz Ricardo.


Fotografia de Mafalda Gomes

Depois dessa primeira fase em que se alimentam de couve, os parques de madeira colocados dentro de cada recinto – uma estrutura que se assemelha a uma palete – tornam-se essenciais. É que além de ser ali que as caracoletas se escondem depois durante o dia, também funcionam como alimentadores. Para a casca das caracoletas ficar rija, é-lhes dada uma ração rica em cálcio. «Além do tamanho, o que confere valor de mercado ao caracol é a perfeição e a uniformidade da concha. Quanto mais bonita e mais rija, mais valor de mercado tem, assim como o tamanho», contam. E o rebordo da casca é especialmente importante. «Tem que estar inteiro, tem que fazer esta aba para fora. E tem que ser rija para não se partir no transporte ou mesmo durante a apanha», vai mostrando Ricardo com uma caracoleta na mão.

Nesta fase, embora as couves já não cheguem para alimentar os animais – cada caracol come em ração uma vez e meia o seu peso – continuam a desempenhar um papel importante. «À medida que vão crescendo passam só a comer a ração, mas a cobertura vegetal também serve para manter a temperatura mais baixa junto à terra, fica mais fresco. Se metermos o termómetro aqui se calhar estamos com 40 graus, lá em baixo talvez 31 e temos uma humidade mais elevada, o solo aqui fica mais húmido e é esse lugar que eles procuram». 

Ao fim da tarde, depois de regar a estufa, as caracoletas sobem para ir comer a ração em cima dos alimentadores e ficam agarradas à madeira. Com o calor, a madeira seca e vão novamente para baixo do abrigo, em busca do fresco da terra. E andam neste ramerrame até serem adultos e estarem prontos para ser apanhados – ou seja, quando têm um peso entre os 18 e os 25 gramas. «Em três meses é uma evolução brutal, não é?», questiona Inês com dois caracóis em diferentes fases de crescimento em cada mão.

A seguir chega a fase mais intensa de trabalho para Inês e Ricardo, que apanham as caracoletas uma a uma e também as embalam manualmente.

«Vão em sacos de cinco quilos, caixas de 15 e em paletes de 825 quilos», recita a helicicultora. 

Para já, exportam quase toda a produção para Espanha e França, mas também têm algumas vendas residuais internas. «Como produzimos bastante a exportação é o caminho mais fácil, porque vai num tiro, é logo despachado». Já o preço de mercado oscila entre os quatro e os seis euros, consoante se trate de venda a retalho ou a particulares.

De momento, não pensam em apostar em nenhuma indústria relacionada com o produto. «Sei que se fala lá fora até de aproveitar os intestinos da caracoleta para fazer a ração para os cães, porque é altamente nutritiva. O caracol tem pouca gordura, tem muita proteína, tem aminoácidos, é um alimento completo. Mas neste momento estamos só focados na produção», diz Ricardo.

Mudar duplamente de Vida

Numa altura em que a revitalização do interior voltou a estar na ordem do dia, vale a pena ouvir o casal, já que estamos perante dois lisboetas que trocaram a vida na cidade para uma experiência diametralmente oposta.

Quando se mudaram para as Mouriscas, Inês tinha 26 anos e Ricardo 32. Até à data, tinham vivido sempre em Lisboa. E estavam os dois nos quadros das respetivas empresas. Ela, licenciada e mestre em Economia, era auditora. Ele trabalhava numa empresa de segurança. 


Fotografia de Mafalda Gomes

«Sempre gostámos de agricultura e queríamos ter um negócio os dois, e uma coisa levou à outra», começa por relembrar Inês. A mudança para o interior acabou por ser uma junção de dois fatores: por um lado, era mais fácil terem acesso a um espaço para desenvolverem o negócio. Por outro, tinham família na zona, pelo que não se sentiam «totalmente desenraizados». Mas reconhecem que «a adaptação não foi fácil» e apontam como principal problema o acesso à cultura. «Sabíamos que íamos ficar limitados em muita coisa para futuramente conseguirmos tirar proveito dos sacrifícios. Para dois jovens não é fácil – por exemplo, uma coisa tão simples como ir ao cinema».

Mas também falam de (muitas) vantagens . «Aqui temos espaço, os cães podem andar à solta, correm, brincam. O trânsito aqui é ótimo: quanto muito encontramos um trator pelo caminho», vão enumerando. E recordam-se quase em simultâneo de um grande mudança nas suas vidas. «Coincidência ou não, nunca mais ficámos doentes! Há três anos que não temos uma gripe». Será do campo ou dos caracóis?