Nuno Crato. ‘A nova reforma está mal desenhada’

Na semana em que estalou a polémica ao redor de alterações ao programa de Português do secundário, com Os Maias a deixarem de ser referência, o ex-ministro da Educação aponta ao SOL algumas falhas da flexilização curricular, que considera ser um retrocesso a 1999. 

Nuno Crato. ‘A nova reforma está mal desenhada’

A flexibilização curricular está a ser feita com base em documentos «muito pobres e muito vagos» a partir dos quais «é impossível» desenhar programas «rigorosos e claros». É assim que o ex-ministro da Educação, Nuno Crato, olha para a reforma curricular que está a ser desenhada pela equipa ministerial de Tiago Brandão Rodrigues. Em entrevista ao SOL, Nuno Crato tece algumas críticas à flexibilização curricular, sobretudo no que diz respeito às alterações previstas aos programas de Matemática e de Português. O ex-ministro salienta ainda que foi a sua equipa a lançar em 2014 a flexibilização curricular, apontando as diferenças entre o seu projeto e a reforma deste Governo.

Que opinião tem sobre a flexibilização curricular?

A flexibilização curricular não foi introduzida por este Governo. Foi introduzida pelo nosso, em 2014. Mas tínhamos uma série de pressupostos e de salvaguardas que garantiam que essa flexibilização não se iria traduzir numa degradação do nível de ensino. Entre essas medidas estavam a salvaguarda do programa comum de Português e de Matemática e estava um número de horas mínimo para as diversas disciplinas e uma obrigatoriedade de nas disciplinas sem exame cumprir uma série de objetivos essenciais. As metas curriculares e os programas tinham de ser cumpridos. Portanto, não sou contra a flexibilização curricular. As escolas devem ter oportunidade de criar novas disciplinas, de juntarem disciplinas em determinados momentos, de colocarem o ensino de Matemática e de Física na mesma aula durante algum tempo, por exemplo. Isso é bom, e é proveitoso que as escolas façam experiências, com alguns limites, e inovem na maneira de ensinar, também com certas cautelas. Mas a grande questão é que tudo isso deve ser feito cumprindo objetivos e com uma avaliação final. Ou seja, é necessário que existam referenciais comuns a todas as escolas e que esses referenciais sejam rigorosos. Deve existir alguma forma de avaliação daquilo que está a ser feito de forma a que não se criem desigualdades entre escolas e alunos. 

Quais são as principais diferenças entre a flexibilização que desenhou e a deste Governo?

Tínhamos a salvaguarda das disciplinas essenciais, o Português e a Matemática. E tínhamos um processo de avaliação que foi destruído porque as provas nacionais do 4.º e do 6.º ano acabaram. Para os exames finais no 9.º e no 12.º ano, que estão hoje um pouco em causa pela forma como são feitos, nós mantínhamos uma clareza sobre aquilo que os alunos deveriam saber. Estas são as grandes diferenças. Havia avaliação, havia restrições em relação à flexibilização para salvaguardar a igualdade de oportunidades dos alunos. Se não for feito assim o que pode acontecer é que alguns alunos em algumas escolas tenham um ensino muito menos rigoroso do que outros alunos de outras escolas. Isso cria desigualdades no futuro que são muito difíceis de recuperar. Essa era a nossa grande preocupação, que não houvesse alunos desfavorecidos por causa da flexibilização curricular.

Há disciplinas e aprendizagens que se podem reduzir ao essencial?

Há certamente partes de disciplinas que são mais importantes que outras. Mas o problema não é esse. Ou seja, haver uma incidência em algumas partes das disciplinas não me parece mal. O problema é que essa incidência tem que ser muito clara. E os documentos que estão em apreciação são muito pobres e muito vagos, a partir dos quais é impossível ter programas rigorosos.

O que é para si o essencial das aprendizagens, por exemplo no Português e na Matemática?

Depende dos anos de escolaridade. Mas no Português demos muita importância à fluência de leitura, logo de início. A fluência de leitura é algo que deve ser medido e que não é difícil ou impossível de alcançar, mas infelizmente muitos alunos não desenvolvem adequadamente. Por isso, centrámos logo de início o foco na fluência de leitura. Depois há todas as outras áreas como o desenvolvimento de vocabulário, desenvolvimento de gramática, de escrita como capacidade de comunicação, leitura analítica e crítica dos textos. Tudo isso é muito importante. Numa etapa seguinte do Português, é importante que os alunos tenham contacto com a literatura portuguesa e com os grandes textos. E aí tudo aquilo que seja reduzir o cânone de leitura me parece mau. Ou seja, de Eça de Queiroz era obrigatório ler Os Maias ou A Ilustre Casa de Ramires, eu preferiria que houvesse um texto obrigatório e que depois os alunos pudessem ler outro. Mas também entendi os argumentos a favor destas duas possibilidades. Agora, se ainda o vamos generalizar, e se pode ser qualquer romance do Eça de Queiroz, julgo que se vai no mau sentido. 

Porquê?

Porque a leitura comum por todos os alunos de alguns textos cria uma linguagem comum e referências comuns, que são importantes para o seu desenvolvimento cultural em toda a vida. Ou seja, o facto de ter lido Os Maias sabendo que os meus colegas leram todos o mesmo romance cria uma plataforma de referências culturais e de diálogo que não cria se cada um ler o seu. Uma referência comum é muito importante para a criação de um sentido comum de nação, de cultura nacional, e desenvolve em todos a capacidade de comunicação. 

E não havendo uma referência pode criar problemas nos exames nacionais?

Isso é outro problema. O que se passou com o exame de matemática A foi triste porque há alunos com o novo programa e alunos com o programa antigo e o Ministério recusou-se a fazer dois exames e a clarificar as coisas, de tal forma que ninguém sabia bem o que iria aparecer. Uma das razões para que existam programas claros e explícitos, pelo menos nos mínimos comuns, é permitir que haja uma avaliação fiável, padronizada e justa dos alunos. Se os alunos não sabem exatamente o que se quer deles, é natural que se crie alguma confusão. Foi o que se passou este ano, infelizmente.

Mas não havendo uma obra obrigatória no programa pode trazer risco de os alunos chegarem ao exame e lhes seja pedido que analisem uma obra que não estudaram nas aulas?

Não dramatizaria muito esse ponto, porque os alunos devem estar preparados, através de leituras diversas, para abordar um texto novo. A minha ideia não é que os alunos decorem Os Maias para o exame. O que penso é que se todos os alunos lerem Os Maias têm uma linguagem comum para o seu futuro cultural, não estou aqui a falar do exame.

Que autores deviam ser estudados hoje e que não estão nos programas?

Quando foram feitos os novos programas de Português insisti com os professores para o problema grande da fluência de leitura e para a existência de referências de literatura, para que os alunos saibam mais de literatura. Os professores que fizeram os programas, que são especialistas na matéria, debateram-no e chegaram às conclusões a que chegaram. Como não sou especialista em literatura nem me cabia a tarefa de discutir os conteúdos concretos, não me meti nisso. O que fiz e acho que era o meu dever fazer foi insistir no reforço da leitura, no reforço da literatura e no reforço do cânone. Mas penso que deveriam estar nos programas bastantes autores e daqui a alguns anos, com os alunos mais bem preparados, seria bom introduzir mais autores. Neste momento parece-me existir, no global, um número razoável de autores portugueses nos programas que fizemos. 

A SPM fez algumas criticas duras à proposta para a revisão da matemática com a flexibilização. Partilha destas opiniões? Estamos perante um retrocesso da aprendizagem dos alunos?

Parece-me que a proposta é muito vaga. E o que se verificou agora, e muito seriamente, nestes exames, é que as coisas não devem ser vagas. Devem ser claras e exigentes. Não fiz uma análise no pormenor. Mas, no geral, o que reparo é que estas propostas vão no sentido contrário àquilo que me parece ser necessário, que é reforçar a exigência e a clareza dos programas. Estas propostas vão no sentido contrário. Vão no sentido de serem menos exigentes e de serem menos claras. Isso é mau. E em Portugal, entre 2011 e 2015, tivemos um progresso muito notável na qualidade de ensino. Fala-se agora que tivemos uma crise no ensino da Matemática mas a crise era muito muito maior anteriormente. Estamos muito melhor do que estávamos na altura e porque é que agora, que estamos muito melhor, se quer voltar aos tempos em que se estava pior? Parece-me ser um erro grande. Temos de ver porque é que conseguimos progredir tanto nos últimos anos, que diria serem os últimos 15 anos mas mais em particular os quatro anos de 2011 a 2015 que é o intervalo entre o PISA [Programa Internacional de Avaliação de Alunos da OCDE]. No último PISA pela primeira vez ficámos acima da média da OCDE.

Esta reforma vem deitar esses resultados por terra?

Penso que esta reforma vem no sentido contrário ao progresso que fizemos nos últimos 15 anos, e sobretudo entre 2011 e 2015. Conseguimos esse progresso porque existia mais exigência, mais clareza e mais avaliação. O que se está a passar agora é precisamente o contrário. É reduzir a avaliação, reduzir a exigência e reduzir a clareza. E isso parece-me mau. 

A flexibilização vai ser testada em projeto piloto em algumas escolas. Isso pode ser um problema?

Não acho mal que existam projetos piloto que sejam depois alargados, ou não, conforme a avaliação. Mas não se conhece avaliação nenhuma. E era bom que houvesse uma avaliação independente destas experiências. 

Quem deve fazer essa avaliação? 

Não deve ser feita pelo Ministério nem pelos que ajudaram a delinear esta política. Seria bom que o Ministério divulgasse dados que todos pudessem analisar, permitisse a investigadores irem às escolas para verificar o que está a acontecer. E deveria existir uma avaliação padronizada, que permitisse ver como é que os alunos se desenvolveram e permitisse comparar as diversas situações. E deveria ser encomendada a várias entidades externas, seria bom que fosse mais do que uma, na avaliação destas experiências. Mas para haver a avaliação desta experiência é preciso que existam dados sobre o que está a acontecer. É preciso saber o que os alunos aprenderam com a flexibilização e saber o que os alunos aprenderam sem a flexibilização, para se poder comparar. A avaliação de forma padronizada e independente não está a ser feita, está aliás a ser bastante abastardada. 

Qual é a sua perspetiva em relação a toda esta reforma? O que falta para que tenha sucesso com os alunos?

A nova reforma está mal desenhada e com equívocos. O que precisamos é de continuar um caminho de progresso, que depende de várias coisas básicas, tais como exigência e clareza. E esta reforma vem no sentido de voltar a 1999, quando os programas eram muito vagos, quando imperavam ideias muito românticas sobre o ensino e quando não havia praticamente avaliação externa. Temo que as coisas piorem.

Este Governo acabou com várias medidas tomadas durante o seu mandato, como as provas nacionais e a PACC (prova de acesso à profissão para professores contratados). Como vê tudo isto?

Se tomei essas medidas foi porque achei que eram necessárias e úteis. Olhando para os resultados, algum efeito positivo terão tido: no PISA, de 2012 para 2015, passámos pela primeira vez para cima da média da OCDE, no TIMSS [avaliação relativa à matemática] os nossos alunos do 4.º ano ultrapassaram o país de referência educativa na Europa: a Finlândia. Queremos manter o progresso ou voltar atrás?