Oliveira do Mouchão. Há três milénios a apontar o caminho do rio

A árvore mais antiga do país tem 3350 anos. Esta testemunha silenciosa de milénios teve, nos últimos dez anos, uma vida atribulada e um fim iminente à vista: primeiro, quase foi cortada para lenha. Depois viu, finalmente, a sua provecta idade ser respeitada. Hoje, é um local de romaria que atrai pessoas de todo o…

Nas Mouriscas, no concelho de Abrantes, há uma pequena localidade chamada Cascalhos que está a tornar-se local de romaria por um motivo único: é o berço da árvore mais antiga do país, que é também uma das mais velhas do mundo. Conhecida pelos locais como Oliveira do Mouchão, apresenta no bilhete de identidade uns impressionantes 3350 anos. É uma testemunha silenciosa do tempo, nascida mais de um milénio antes de Cristo, praticamente na mesma altura em que Nefertiti pisava o Egito. Resistiu a intempéries, guerras, viu por ali passarem povos, desde os celtas aos árabes, não esquecendo os romanos, que tanto valorizavam o azeite. Depois vieram as fronteiras lusas e, assim, a oliveira viu-se parte de um país que também já tem mais de oito séculos de História. E é fácil imaginar que, debaixo da sua sombra, terão descansado guerreiros e pastores, que famílias terão ceado em passagem e que os amantes tenham aproveitado o tronco, que faz uma espécie de gruta, para encontros inconfessáveis.

Hoje, a sua provecta idade não a impede de estar carregada de flor: continua a produzir azeitona, embora «não preste, é brava», afiança um vizinho. 

Foi José Luís Lousada, professor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), quem datou a oliveira através de um método científico que desenvolveu especificamente para chegar à idade destas árvores.

Desde 2016 que a oliveira das Mouriscas é, oficialmente, a árvore mais antiga do país, seguindo-se uma outra oliveira em Santa Iria da Azóia (com 2850 anos), também datada através do mesmo método e que, recorda o professor, «esteve para ser abatida para que ali se construísse uma rotunda». Também a Oliveira do Mouchão esteve, quase literalmente, com uma motosserra ao pescoço – já lá iremos.

Para um ser vivo que habita o planeta há mais de três milénios, esperava-se mais fogo-de-artifício à sua volta: mas não há nada, nem uma simples plaquinha a indicar ‘Oliveira do Mouchão’. Ainda assim, os acessos são bons: há que sair na A23 (em direção a Castelo Branco) na placa que diz Mouriscas, virar logo à direita em direção a Gavião, seguir pouquíssimos quilómetros por essa estrada e virar à direita quando surgir a indicação de Cascalhos. Depois, o melhor é para no café da Dalila e perguntar. Dali até ao nosso milenar destino nem dois minutos se demora. E lá estava ela, imperturbável, com o seu «perímetro de base de 11,2 metros, um perímetro à altura do peito de 6,5 metros e uma altura de tronco até às primeiras pernadas de 3,2 metros».

Recentemente, foi construído uma espécie de murete em torno da oliveira que, durante anos, para lá de já ter produzido toneladas de azeitonas, teve outras utilizações mais atípicas. Contam-nos que o espaço oco que se formou dentro da própria árvore, a tal gruta natural, serviu de manjedoura para dar comida aos bois e que havia também na terra quem a usasse como… urinol.

Curiosidades à parte, há uma espécie de magia num exemplar destes. Parece que, dos ramos, pende um sussurro a exigir reverência. Claro que para os habitantes habituados a viver do campo – e logo numa zona com tantas oliveiras de grande porte – a Oliveira do Mouchão é (quase) só paisagem. Ainda assim, todos conhecem bem a história (mais recente, está visto) da velhinha oliveira, que atrai cada vez mais visitantes a uma terra onde mora cada vez menos gente.

«Ainda ontem estiveram aqui duas camionetas com crianças de Loulé», conta Maria de Assunção Serrano, uma das moradoras que, como se verá, está envolvida com o destino da oliveira.

Uma benfeitoria que quase acabou em lenha para a fogueira

Maria de Assunção e Dalila, a proprietária do café, são primas e, segundo os habitantes, as pessoas mais conhecedoras da história da oliveira, que vão contando à vez até chegarmos ao feliz desfecho – o da classificação do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas como «Árvore Monumental». Mas é Fernando Abreu, de sessenta anos, outro natural da terra, que começa por contar como foi batizada a oliveira, que conhece por este nome desde que nasceu. «Isto era uma zona ribeirinha, e dizem que antigamente os pescadores se juntavam ali na oliveira velha, e era de lá que seguiam para os pesqueiros, ou pesqueiras [uma estrutura à beira Tejo onde se pescava]. Partiam da oliveira e o primeiro a chegar ao rio ia apanhar a pesqueira do Mouchão, que era a melhor de todas. Por isso ficou Oliveira do Mouchão». E o caminho usado como pista de corridas pelos pescadores tem ainda outra particularidade: dizem que já vem do tempo dos Filipes, quando o Tejo fazia as vezes de autoestrada.

Fernando diz não ter ficado ficado assim tão surpreendido quando soube que esta era a oliveira mais antiga do país. «Como esta havia aqui muitas, eu também tinha duas ou três destas que acabei por arrancar porque aquilo já não dava nada. Esta, como nunca ninguém lhe ligou, foi ficando sempre».

Dalila acrescenta mais pormenores. «Esta era uma oliveira ralia, que as pessoas davam à igreja ou a outras pessoas para pagar uma dívida. Houve um senhor ou uma senhora, já não sei quem, que deu a oliveira à Igreja». A história embrulha-se um pouco, mas depois é retomada com a compra da árvore por uma família, que é herdada por duas irmãs solteiras, conhecidas na terra como Mendonças. Nos anos mais recentes (as teorias divergem entre os dez e os quinze anos), uma das irmãs proprietárias, Ermelinda Mendonça, resolveu dar a árvore a uma prima, Maria da Assunção Serrano, para que a cortasse para fazer lenha. «Ela também é minha prima», continua a Dona Dalila, enquanto pede para alguém ir chamar a senhora que, ao fim e ao cabo, selou o destino da Oliveira do Mouchão.

«Nessa altura quando o meu marido foi lá ver a oliveira viu que a lenha não prestava», continua, antes de um aparte: «Sabe que antigamente aquela era aqui a casa de banho dos homens? É tudo verdade isto!». Voltando ao corte iminente: «Alguém se lembrou de avisar a presidente da Junta, que pediu para não cortarem a oliveira. Mas o meu marido também já tinha dito que não a cortava», atalha.

Depois de uns últimos anos atribulados, lá foi pedida a avaliação da idade à UTAD e… voilá. «Depois de sabermos a idade a minha prima Ermelinda deu a oliveira acho que a uma empresa, fez uma escritura e tudo», diz Maria da Assunção. «Pelo menos agora está zelada, que dantes estava muito feia. Mas sou sincera: nós que moramos aqui ao pé, não damos importância nenhuma àquilo. Até porque quando nós abalarmos não fica aqui ninguém». 

Miguel Bento, um dos poucos jovens da terra, ocupa uma das portas mais próximas da Oliveira do Mouchão: é dono de uma oficina, um negócio que já herdou do pai. «Antigamente havia aqui mais pessoal jovem e íamos para ali brincar. Não costumávamos subir, mas íamos para a gruta. Dantes tinha menos terra», lembra. Miguel conta que agora, desde a sua classificação, à porta da sua oficina há «um grande corrupio». «Já cá vieram canadianos, chineses, suecos… Normalmente param aqui à porta a perguntar o caminho», diz entre risos: «Tenho que pôr aqui uma placa».

Um modelo matemático pela preservação do património

Os oliveiras mais antigas podem ter nascido, regra geral, de duas formas: espontaneamente, «o que é o mais frequente em Portugal»; ou por ação dos romanos, «como é notório em Espanha», explica o professor José Luís Lousada. Neste caso em particular, é impossível saber como nasceu a oliveira.

José Luís Lousada já perdeu a conta ao número de árvores que datou. «Já foram centenas», diz. A aventura começou quando o dono da empresa Oliveiras Milenares pediu à UTAD que desenvolvesse um método para que fosse possível datar as oliveiras. O investigador acabou por desenvolver um modelo matemático que consegue traduzir de quantos anos uma árvore necessita para chegar a uma determinada dimensão, o que veio resolver um problema: como é tudo feito à base de medições, o facto de o tronco ser oco não afeta a exatidão do resultado. 

Para tal, e só numa primeira fase, foi preciso estudar mais de 600 árvores, que, por acaso, estavam disponíveis. «A construção do Alqueva e de uma autoestrada perto de Évora obrigou ao corte de muitas árvores, noutros casos tivemos acesso aos cepos», recorda o investigador. 

O estudo, que levou dez anos e custou na ordem das dezenas de milhares de euros, foi depois patenteado pelo empresário, que firmou um protocolo com a Universidade. Hoje, qualquer pessoa pode pedir para uma árvore ser avaliada – se pagar, claro, as custas do processo. Para o professor, o método – que tem que ser calibrado consoante a região do país – teve, desde o início, «resultados surpreendentemente positivos», com uma margem de erro a ficar-se pelos 3%. E, por outro lado, veio alertar para a importância destes magníficos seres vivos, tornando-se uma forma de «ajudar todas estas atividades da defesa do património».

A Oliveira do Mouchão é disso testemunha. «Muitas pessoas não fazem a mínima ideia de que tipo de respeito merece um ser vivo desta idade», alerta o especialista, afirmando que, ainda assim, estes assuntos merecem hoje mais interesse da sociedade do que há trinta anos. Um caminho que a Oliveira do Mouchão esperou três milénios para começarmos a percorrer. Ficará lá outros tantos anos, a resistir, incólume, às forças do mundo? José Luís Lousada dá uma resposta bonita: «Arrisco-me a dizer que as oliveiras são eternas».