O tédio de uma vida sem preocupações nem objetivos

É evidente que ninguém pode ter lido todos os livros considerados ‘obrigatórios’, mas considerava uma mácula imperdoável no meu currículo nunca ter lido A Cidade e as Serras. Por isso, sempre que alguém me falava no clássico de Eça, eu tentava disfarçar a minha lacuna ou mesmo fingir que já o lera – o que…

É evidente que ninguém pode ter lido todos os livros considerados ‘obrigatórios’, mas considerava uma mácula imperdoável no meu currículo nunca ter lido A Cidade e as Serras. Por isso, sempre que alguém me falava no clássico de Eça, eu tentava disfarçar a minha lacuna ou mesmo fingir que já o lera – o que de resto nem era muito difícil, uma vez que conhecia o enredo e tinha lido há alguns anos Civilização, o conto que esteve na génese do genial romance.

Já não sei ao certo quando tomei essa decisão, em todo o caso terá sido no início do ano, quando o verão ainda vinha longe, que pensei que A Cidade e as Serras seria a minha leitura de férias. Estava na hora de pôr fim à minha ignorância. E que bem que me soube!

A prosa de Eça retrata na perfeição o tédio – os franceses têm uma expressão boa para isso, l’ennui – da vida sem preocupações nem objetivos de um riquíssimo herdeiro português em Paris, o afortunado Jacinto. Com todas as condições asseguradas, com os maiores luxos à distância de um estalar de dedos, nada lhe interessa, nada o comove, nada o entusiasma. «E agora aos 33 anos a sua ocupação era bocejar, correr com os dedos desalentados a face pendida para nela palpar e apetecer a caveira».

Consultado por Zé Fernandes (o narrador e rústico amigo de Jacinto), o fiel criado Grilo faz um diagnóstico certeiro.

«Uma noite no meu quarto, descalçando as botas, consultei o Grilo.

– Jacinto anda tão mudo, tão corcunda… Que será, Grilo?

O venerando preto declarou com uma certeza imensa:

– Sua Excelência sofre de fartura».

Está tudo dito, não está?

Não, não está. Uma reviravolta inesperada altera o cenário do livro e a sua atmosfera. Do requinte artificial de Paris passamos para a vida sã e autêntica – ainda que por vezes agreste – nas serras do Douro. A princípio contrariado, Jacinto vai descobrir ali todo um novo mundo de cuja existência nem suspeitava.

Esta história simples é contada de forma magistral, na linguagem rica e saborosa do maior prosador português.

Mas há muito para lá disso.

Por alguma razão, habituei-me a ver em Eça um grande escritor, sem dúvida – mas algo superficial. Em A Cidade e as Serras encontrei, além de situações hilariantes, críticas impiedosas e uma escrita sumptuosa, uma sabedoria sólida e profunda.

E há ainda outro aspeto que faz desta uma leitura ideal para as férias. Enquanto Os Maias, de 1888, terminam sem ponta de esperança, A Cidade e as Serras está impregnado de um otimismo contagiante. Curiosamente, o autor morreria logo no ano seguite à publicação, possivelmente de tuberculose, na sua casa perto de Paris. Ele lá tinha as suas razões para desconfiar da capital francesa.