Teresa Palma Pereira. ‘Estar no palco é como estar na vida: no limite’

É uma das mais talentosas pianistas portuguesas da sua geração. Teresa Palma Pereira foi sempre uma menina prodígio: completou o oitavo grau do Curso Superlativo de Música com 20 valores; entrou aos 16 anos para a Escola Superior de Música de Lisboa com uma bolsa para alunos especialmente dotados; terminou a licenciatura em Piano com…

Teresa Palma Pereira. ‘Estar no palco é como estar na vida: no limite’

É uma das mais talentosas pianistas portuguesas da sua geração. Teresa Palma Pereira foi sempre uma menina prodígio: completou o oitavo grau do Curso Superlativo de Música com 20 valores; entrou aos 16 anos para a Escola Superior de Música de Lisboa com uma bolsa para alunos especialmente dotados; terminou a licenciatura em Piano com 19 e continuou a estudar – primeiro no Porto e depois na Bélgica. Aos 32 anos, Teresa Palma Pereira garante que ser chamada de ‘a filha do ministro’ [a pianista é filha do antigo ministro da Administração Interna Rui Pereira] já não a incomoda. Culpa do currículo que entretanto ganhou, com recitais um pouco por toda a Europa. O mote da entrevista ao b,i. foi o I Festival Internacional de Piano de Oeiras, que Teresa organizou durante este mês e que termina no domingo, mas a conversa foi mais além e passou pelo papel da música clássica em tempos de não silêncio e pela necessidade de aproximar as pessoas comuns à música erudita. 

Pouco depois de ter lançado o seu terceiro disco, ouvi-a dizer que a sua preocupação como intérprete, naquela fase, era encontrar uma sonoridade própria. O que procurava, afinal? 

Era uma questão de verdade e de intimidade com o instrumento. Nós somos sujeitos a um ensino rígido durante muitos anos e, por vezes, estamos a tocar, mas não estamos completamente descontraídos, porque temos sempre presente que precisamos de fazer de uma determinada maneira. O ‘deve-se’, o como se deve fazer. Tocar piano, e ouvi dizer isto muitas vezes durante a minha formação, não é nada natural. Nós não nascemos a tocar. E a dificuldade técnica do instrumento causa-nos preocupação. Não estamos verdadeiramente soltos a tocar. No meu caso, só comecei a sentir uma ligação um bocadinho mais profunda com o piano já depois dos 25 anos. 

A matemática que existe por detrás da música pode comprometer a verdade do músico?

A música é muito matemática, claro. E o instrumento é, acima de tudo, muito técnico. Nós precisamos de aprender como é que se deve fazer, mas se ficarmos excessivamente nesse lugar do dever, alguma coisa de verdade pode ficar comprometida. E eu julgo que era disso, deste equilíbrio, que estava ainda à procura naquela época. Agora estou a alguns meses de lançar o meu próximo CD, em relação ao qual ainda não posso falar muito, e já houve outras preocupações.

De que tipo?

Se no último disco era a relação íntima com o instrumento, neste será um pouco o abrir dessa intimidade aos outros.

Isso significa que já encontrou o seu lugar?

Vamos encontrando, em cada passo. 

Ainda há o que inventar na música erudita? 

Certamente que haverá. Estamos muito centrados na música antiga, sendo que a música do século XX já começa a ser antiga, se atendermos à maneira como funciona, por exemplo, a indústria pop. No que diz respeito à música erudita continua a haver criação, sendo que eu não estou tão ligada à interpretação do reportório contemporâneo. De qualquer forma, em relação à música antiga cada pessoa acrescenta, inevitavelmente, alguma coisa de novo através da interpretação que faz. Ainda assim, acho que onde há sobretudo que inovar é na forma como nos apresentamos ao público.

No sentido de criar maior aproximação? 

Sim. A forma como a música era apresentada ao público até há bem pouco tempo tinha essencialmente a ver com o contexto histórico e social, com o como se vivia. Mas o mundo mudou e nós também temos de repensar como é que nos encaixamos nas necessidades e no ritmo do mundo em que vivemos. Acho que temos uma certa responsabilidade em nos adaptarmos.

O desfasamento que existe entre a música erudita e o grande público é, então, responsabilidade dos músicos? 

Também. Embora também falte, e muito particularmente em Portugal, investir mais. Em projetos e, acima de tudo, na parte da Educação. É preciso aprender a ouvir desde cedo, estar habituado a ouvir. Na infância é tudo fácil e rápido, desde que seja feito cedo.

Quando começou a tocar? 

Comecei cedo (risos). Tinha oito anos. 

Foi uma decisão sua?

Foi orientação familiar, dos meus pais e da minha avó. Nunca fui daquelas crianças que pediam ‘quero ir estudar música ou quero ir estudar piano’. E o piano, especificamente, foi uma decisão um bocadinho impulsiva. Eu já estava a ter formação musical, leitura de partituras sem a parte do instrumento, e houve uma apresentação de instrumentos na escola de música onde andava [a Escola Nossa Senhora do Cabo, em Linda-a-Velha]. Tive um fascínio imediato pelo piano.

Mais alguém toca na família?

Não. Acho que os meus pais acharam que fazia parte da educação pôr-me a aprender música. Foi uma coisa que me quiseram proporcionar, talvez porque eles não tiveram. Eu acho que os meus pais têm um sonho secreto e frustrado de ser artistas. Nunca mo disseram, mas provavelmente projetaram isso em mim. Um e outro têm uma sensibilidade grande para as artes, para a música. Talvez funcione, para eles, como um escape ao mundo mais formatado do Direito.

Sendo os dois juristas, não ficaram chocados quando perceberam que a música ia tornar-se numa coisa mais séria no seu percurso?

Não, mas eu também deixei claro desde cedo que o Direito não era a minha vocação. De qualquer forma, nunca me puseram obstáculos. Talvez até só mais tarde tenham percebido as dificuldades que existem nesta área. Só quando saímos da escola percebemos a dimensão das dificuldades do meio.

É possível tocar e viver de forma confortável?

Há sempre a dose de instabilidade que é normal nos meios artísticos. O que é pena é não haver tanta vida cultural em Portugal como poderia existir. E a crise foi um grande golpe para a indústria da música clássica, se é que assim se pode chamar. Mas também acho que compete à minha geração e aos mais jovens fazer coisas diferentes. 

Continua a tocar muitas horas?

Nos anos de formação toca-se muito. Agora já não sigo tanto essa disciplina, pelo menos de forma tão obsessiva, embora a ache necessária. Nesta carreira tem de haver uma organização e uma disciplina rigorosas e, mais importante do que a quantidade de horas que se toca, é a regularidade com que se toca. Só a inspiração não chega. 

Também pinta e até já expôs. Existe, em si, uma inclinação óbvia para a arte. De onde virá? 

A pintura é meramente um hobby e relativamente recente. Talvez esta sensibilidade tenha sido o produto de os meus pais terem enveredado por uma vida um pouco sufocada em profissões em que tudo tem de ser muito sério e formatado. Precisei de criar um espaço. A principal razão pela qual eu não poderia ter esse tipo de atividade profissional é porque há um certo abdicar da intimidade. É tudo muito exposto. Estar num palco também é exposto, mas é diferente… porque uma pessoa está no palco e está intocável. Talvez eu tenha procurado na música uma intimidade de que se calhar os meus pais abriram um bocadinho mão.

Teve dissabores por culpa da exposição do seu pai?

A altura em que ele foi ministro foi tensa para toda a família. Nas épocas de incêndios há uma pressão psicológica grande. Foi, sem dúvida, a época mais tensa da nossa vida familiar.

Irrita-a que a chamem ‘a filha do ministro’?

Não, se bem que o meu pai já nem é ministro. De qualquer forma, acho que quem, maliciosamente, tentar reduzir o meu trabalho a isso… não tem noção do esforço. Das tais horas de que falávamos. 

Apesar de ter só 32 anos, já criou uma série de projetos. Curiosamente, todos parecem ter um ponto comum: a vontade de promover o encontro entre as pessoas comuns e a música clássica. 

Fui fazendo algumas coisas, sim. O Clássicos à solta, o Clássicos para todos… foram tentativas de trazer a música a espaços mais pequenos, onde é menos habitual, e fazer concertos curtos, comentados com um tema. Também cheguei a fazer aulas experimentais em que as pessoas vinham ao piano.

É fácil implementar projetos desta natureza?

Não é nada fácil, porque não trazem nada a nível de remuneração. É uma coisa que se faz meramente por paixão e, como não consegui nada patrocinado, que seria o que teria feito a diferença, não pude continuar a dedicar tanto tempo a essas ideias.

Os tempos atuais não serão a antítese da música erudita? Há um não silêncio permanente, pressa.

Por isso mesmo é que a música erudita é sobretudo para estes tempos. Para que as pessoas possam procurar o concerto por estarem a precisar desse silêncio, da pausa no barulho de todos os dias. 

É esse o lugar útil da música erudita na discussão clássica sobre a inutilidade da arte? 

Acho que hoje em dia sim. Tal como as pessoas procuram o ioga, a meditação, outras formas de silêncio. Noutros tempos, noutras épocas históricas foi diferente. Havia uma classe média a emergir, ia-se à ópera exibir os vestidos, as peles e até conhecer pessoas para casar. Mas os tempos mudam e a nossa utilidade enquanto músicos clássicos também. Estou convencida de que nós somos a pausa, o minuto de silêncio de que as pessoas precisam em dias corridos.

É também esse o objetivo do Festival Internacional de Piano de Oeiras que está a orientar? 

A nossa grande vontade é trazer ao festival o público que habitualmente não vai a espetáculos do género. Oeiras, parecendo que é central, não o é. As coisas estão muito centralizadas em Lisboa no que diz respeito à cultura e à música clássica. Curiosamente, Oeiras tem uma população escolarizada, com poder económico, jovem, apta para usufruir destes eventos. Só que, ao mesmo tempo, parecia uma aldeia porque não havia nada a acontecer… só pequenos auditórios e atividades pontuais. Senti que faltava qualquer coisa e, sobretudo, que tivesse contornos internacionais. Nesta primeira edição conseguimos ter um pianista norte-americano [Jeffrey Swann], um belga [Jan Michiels] e, este domingo, vamos ter um pianista polaco [Piotr Anderszewski] e um português de nível internacional, um dos maiores pianistas portugueses vivos, o António Rosado. Organizámos masterclasses e foi uma experiência muitíssimo interessante. O nosso objetivo é tornar Oeiras num polo de aprendizagem. Há um intuito muito pedagógico no festival. Por um lado, educar um público já com mais idade, deslocado de Lisboa. Por outro, proporcionar concertos e oportunidades a jovens que estudam piano e que, normalmente, têm de ir procurar este género de eventos lá fora. 

Vai existir uma segunda edição?

Neste momento ainda não está previsto. Mas temos essa vontade.

Vê-se, no futuro, a continuar este tipo de projetos?

Sem dúvida. Cada vez faz menos sentido para mim estar envolvida em projetos alheios. As coisas começam sempre devagar, mas acredito que temos de cultivar os pequenos públicos e acarinhá-los. Eles vão crescendo.

Prefere este tipo de trabalho ou estar em palco?

Prefiro estar em palco (risos).

É, para si, um exercício difícil apresentar-se? 

Na verdade, não. Talvez nenhum outro pianista lhe responda isto, mas… se pensar bem… a vida já é um estar no limite, na corda bamba. Às vezes nós estamos tão ligados nas nossas coisas que nem pensamos nisso, na nossa fragilidade. E é preciso que aconteça qualquer coisa de terrível para nos lembrarmos da nossa condição volátil. A vida é isto, este estar nesse limite. E, nisso, o palco é muito parecido com a vida.