Estatuto dos deputados. Conflitos de interesses não têm sanção

Catarina Martins não fez declaração  sobre unidade de alojamento local do marido na proposta de alterações ao setor. BE diz que a coordenadora não precisava de o fazer e não votou a lei. O PS também concorda, mas o ex-presidente da comissão de Ética diz que regra é obrigatória. A verdade é que o Estatuto…

Quando o tema  eram as farmácias, António José Seguro, deputado e antigo líder do PS, declarava o registo de interesse prévio: a mulher é proprietária de farmácias e, por isso, o então deputado cumpria à letra o artigo 27 do Estatuto dos Deputados. O artigo diz que os parlamentares «devem previamente declarar a existência de interesse particular» quando intervenham nos trabalhos. O expoente máximo dessa intervenção são as votações e aí nem sempre  se cumpre o registo.  Por exemplo, no caso das novas regras de Alojamento Local, a coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, não fez a declaração, apesar de o marido deter uma empresa com uma unidade de alojamento local além de outras quatro de turismo rural no Sabugal. A deputada não esteve presente no momento da votação, apesar de estar inscrita no sistema eletrónico e na lista de presenças. «Não votou o diploma», garante fonte oficial (mas há quem chame a atenção para o facto de Catarina Martins ser proponente de uma das propostas de lei e também quem chame a atenção para o facto de, constando da listas de presenças, ser dada como votante no sentido de voto da bancada em todas as votações não eletrónicas ou nominais – como foi o caso). De qualquer modo, o BE  entende que nunca seria necessário Catarina Martins fazer o registo – escrito ou oral – «porque já está  no registo de interesses».

No site do Parlamento, a deputada esclarece que detém 4 por cento da Logradouro, vocacionada para o Turismo Rural, pertencente ao marido.

Em março, numa votação  muito confusa sobre o poder de alguns engenheiros assinarem projetos – a par dos arquitetos – duas dezenas de deputados fizeram declaração de interesses ou optaram por não votar a lei. Sara Madruga da Costa, do PSD, anunciou que o cônjuge tinha atividade na matéria. O que relançou o debate. Os deputados são ou não obrigados a declarar a existência de um eventual conflito de interesses? A opinião não é unânime, nem muito clara.

Pedro Delgado Alves, membro da subcomissão de Ética e deputado socialista, considera que não é obrigatório. « O objetivo da declaração de interesses  é ser algo complementar ao registo de interesses», frisa ao SOL.

«António José Seguro não saía da sala, declarava sim que tinha interesse particular na matéria   [farmácias]. Esse é um bom exemplo-correto- da aplicação da norma», reconhece o parlamentar, insistindo que no caso concreto de Catarina Martins «já está no registo de interesses, não é necessário repetir. O objetivo da declaração de interesses  é ser algo complementar ao registo de interesses. Para  esse registo existem sanções. Ou seja, se já está na declaração de interesses – qualquer que seja o facto -, não é necessário replicar de novo», concluiu o parlamentar.

Opinião diferente tem o social-democrata  Matos Correia, vice-presidente do Parlamento e antigo presidente da comissão ética. «Isso não é bem assim», começou por dizer ao SOL.  Para o parlamentar, que é advogado de profissão, o « estatuto dos deputados é claro: existe uma obrigação ética, mas também uma obrigação legal». O parlamentar garantiu ao SOL que já teve de declarar eventuais conflitos de interesse em casos como no da ANA- Aeroportos de Portugal. O seu escritório prestou assessoria no processo. No caso concreto de Catarina Martins, o parlamentar considera que «não viria mal ao mundo fazê-lo [a declaração ].  E concluiu que, apesar não existirem sanções, «nem todas as normas jurídicas têm sanções».

António Carlos Monteiro, do CDS-PP, também é membro da subcomissão de ética e faz a análise de um ângulo diferente, vocacionado para a fiscalização do mandato.  «O princípio é o de que votar é obrigatório, mas deve fazer-se menção desse conflito de interesses para ser objeto de um escrutínio público.  As consequências existem  no registo de interesses, em situação de incompatibilidade ou impedimento. O Estatuto de deputados prevê  impedimentos, incompatibilidades e conflitos de interesses. Nos casos de conflitos de interesse,  se quiser, é um juízo que é feito pelo próprio», sustentou António Carlos Monteiro, sem entrar em comentários sobre casos  de colegas parlamentares.

 

Professores e arquitetos

Na análise caso a caso, os juízos sobre a atitude a tomar variam conforme o parlamentar ou a atividade profissional. Rosa Albernaz, do PS, é docente reformada. Para a socialista, a declaração de eventual conflito de interesses não se lhe aplica, porque está afastada há muito anos. «Não estou ao serviço há muitos anos. Não sinto essa obrigação», assegurou a deputada ao SOL. 

Na mesma linha de raciocínio,   Helena Roseta, eleita pelo PS, explica que já se recusou a votar diplomas. mas não por qualquer conflito de interesses. « Quando não voto, é porque não estou de acordo. Não tenho atividade privada, não estou ligada a uma empresa, não tenho conflito de interesses. Eu já saí da Ordem dos Arquitetos há dez anos, sai, desvinculei-me».

No caso do diploma sobre a assinatura de projetos dos engenheiros, a parlamentar insiste que não existia qualquer conflito de interesses: « Sou arquiteta de formação, mas isso também há aqui  [no Parlamento] muitos engenheiros de formação que votarem a lei sem problema nenhum». 

O debate sobre o alcance da declaração de interesses  dos deputados no Parlamento divide opiniões e Helena Roseta acrescenta que a discussão no quadro das profissões não se aplica porque, caso contrário, nem os advogados poderiam votar os diplomas, porque lidam com leis.

Outro membro da subcomissão de ética, Paulo Rios de Oliveira (PSD), lamenta que a obrigação de fazer uma declaração de interesses não seja acompanhada de uma sanção. «O dever legal tem que ser acompanhado com uma sanção. Não está estipulada  expressamente uma sanção para a falta desta declaração.    Qual a consequência? É politica ou ética.  E lamentavelmente é obrigatório mas não tem sanção», defendeu ao SOL.  

A subcomissão de Ética tem avaliado vários pedidos de deputados sobre eventuais incompatibilidades, mas na atual Legislatura não se pronunciou sobre a entrega ou não de uma  declaração de eventual conflito de interesses. Tem zero pedidos, apurou o SOL.

No caso de Catarina Martins a votação do passado dia 18 julho foi atípica: coincidiu com o funeral de João Semedo, ex-coordenador do BÊ, uma cerimónia que se realizou no Porto e que obrigou parte da bancada a chegar em cima das votações. Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, também foi substituído a meio termo por Jorge Lacão nesse dia e pelos mesmos motivos, tendo sido feito aprovado um voto de pesar unânime em memória do médico, político e ativista.