A França é quem mais ordena

O franco CFA resistiu ao fim do franco francês e mantém a tutelagem neocolonial sobre 14 países africanos. Macron diz que é um ‘não assunto’, mas admite mudar a política monetária.

A França é quem mais ordena

‘Auchan Dégage’ é um coletivo de comerciantes criado recentemente no Senegal para lutar contra a voracidade do grupo de supermercados francês Auchan que está a secar o mercado à sua volta como um eucalipto depois de apenas três anos no mercado. Dégage – que é como quem diz ‘desaparece’, ‘vai-te embora daqui’ – é o grito que muitos habitantes da África Ocidental vêm gritando para os franceses e a França, a antiga potência colonial que continua a tutelar as suas economias através desse instrumento neocolonialista que é o franco CFA, a moeda oficial de 14 Estados da África Ocidental e Central.

O grupo Auchan beneficia, como outras empresas francesas nas últimas décadas, da relação privilegiada e a tutelagem exercida por Paris sobre as economias desses países. Uma tutelagem assente naquilo a que o sociólogo e economista camaronês Martial Ze Belinga chama o «anacronismo» do franco CFA. Belinga, coautor do livro Sortir de la servitude monétaire. A qui profite le franc CFA? (Sair da servidão monetária. Quem lucra com o franco CFA?), explica que os Estados-membros da zona do franco «não têm controlo sobre os seus recursos».

O problema dos países que usam o franco CFA, explica o economista em entrevista ao Le Monde, é o facto de se manter «esse espaço económico completamente irracional que mantém a tutela da Europa sobre as suas antigas colónias». Por exemplo, o Banco Central Europeu tem poder de veto nas questões relativas ao franco CFA, desde a criação do euro. É curioso que o franco francês já acabou, ao contrário do franco colonial.

Os 14 países não têm controlo sobre os seus recursos, nem sobre a política cambial, obrigados que estão a colocar 50% das suas reservas cambiais no banco central francês. Por causa de uma moeda que não tem caução democrática e foi criada ainda os países que hoje a usam eram colónias ou protetorados – pensada no dealbar da II Guerra Mundial para garantir que as matérias-primas continuavam a chegar, foi posta a circular no final de 1945 como moeda das colónias francesas.

O antigo Presidente francês Jacques Chirac afirmava, numa entrevista há uns anos, que «grande parte do dinheiro que temos no nosso porta-moedas vem da exploração de séculos de África», exploração que ainda continua, mais de meio século depois da independência de alguns dos países africanos que hoje utilizam a moeda francesa. Em 1994, a França, com o beneplácito do FMI (na altura liderado por um antigo governador do banco central francês, Michel Camdessus), decidiu unilateralmente desvalorizar o franco CFA em 50%, sem qualquer consulta aos países africanos cuja economia perdia metade do seu valor do dia para a noite. Édouard Balladur, primeiro-ministro francês na altura, garantia que tal tinha sido feito «no interesse desses países», como se os mesmos não pudessem saber quais são realmente os seus interesses e só a França lhes pudesse iluminar. 

Jacques Rueff dizia que «a moeda é o terreno onde tanto o futuro  do desenvolvimento económico quanto o destino da liberdade política estão em jogo» e Kako Nubukpo, antigo ministro togolês, e um dos grandes defensores da abolição da divisa, garantia, num artigo de opinião no Le Monde, que «a zona do franco não consegue atingir esses dois objetivos». Apenas mantém a tutelagem francesa sobre 14 nações africanas num exemplo claro de neocolonialismo.

O ano passado, o escritor e ativista  franco-beninense Stellio Capo Chichi, conhecido como Kémi Séba, foi absolvido por um tribunal de Dacar por ter queimado uma nota de 5000 francos CFA no centro da capital senegalesa. O protesto tinha-lhe valido uma detenção e uma queixa do Banco Central dos Estados da África Ocidental, ao mesmo tempo que chamava a atenção para um movimento de jovens militantes africanos que luta contra esse velho símbolo do colonialismo europeu em África que vem ganhando força nos últimos anos.

Interrogado sobre o assunto, em julho,  aquando da sua visita à Nigéria antes de assistir à cimeira da União Africana, Emmanuel Macron mostrava-se disposto a rever os pressupostos da divisa da discórdia. «Acredito muito na força da integração regional, tanto para a Nigéria, como para os Camarões. Tudo aquilo que a França puder fazer para facilitar essa evolução, incluindo como parte de uma política monetária que deverá ser repensada, a França o fará», disse.
Uma abertura ao diálogo bem diferente da declaração que fizera no final de novembro, aquando da sua visita ao Burkina Faso, em que o chefe de Estado gaulês garantira: «O franco CFA é um não-assunto para a França.»

«Macron parece ignorar que essa moeda foi imposta aos africanos no quadro das torpezas da colonização francesa», escreveu Nubukpo no Le Monde, acrescentando que a questão monetária tinha os mesmos «contornos da violência esclavagista, colonial e pós-colonial».

«Macron que enaltece a chamada estabilidade oferecida pelo franco CFA, esquece-se de insistir no facto de as disposições institucionais que organizam o funcionamento da zona do franco constituírem o veículo por excelência de acumulação de riqueza fora do continente africano», criticava o antigo ministro togolês.

O economista Nicolas Agbohou refere, no seu livro Le Franc CFA et l’Euro contre Afrique (O franco CFA e o euro contra África) que «a França põe naturalmente, como qualquer agente económico inteligente, os imensos capitais africanos nas instituições financeiras com as melhores taxas de rendimento. Apropria-se logicamente do diferencial das taxas de juro. Por exemplo, garante aos africanos uma taxa anual de 2% enquanto recebe um rendimento de 4,5%». Se pensarmos que, em 2005, se calculava que as reservas depositadas pelos 14 Estados africanos no Tesouro francês equivaliam a 72 mil milhões de euros, é fácil fazer as contas a quanto ganha a França com os 2,5% que arrecada desses juros.