Merkel, Trump, kaputt

A conceção que Trump tem da política coloca Merkel como antagonista. A Alemanha não é um parceiro nem um aliado. É um adversário. Sobretudo em três áreas políticas de enorme sensibilidade.

Quem os ouvir nunca diriam que EUA e Alemanha são aliados. Donald Trump e Angela Merkel têm sido protagonistas de uma ácida troca de palavras. Este é o som da animosidade. Em 2015, quando a chanceler foi personalidade do ano para a Time, o então candidato à nomeação republicana apresentava Merkel no seu Twiter como «a pessoa que está a arruinar a Alemanha». As incursões na política alemã não ficariam por aqui: «o que diabo está ela a fazer com os imigrantes», «os alemães vão a amotinar-se contra ela» ou «o povo alemão acabará por derrubar esta mulher». Merkel aguentou em silêncio até às presidenciais americanas. Nessa altura, Angie despachou para Washington uma mensagem de parabéns em estilo tutorial. Sinalizou, um por um, os valores que serviriam de base à relação bilateral: democracia, liberdade, respeito pela lei e pelos direitos humanos. Como se fosse preciso relembra-los ao inquilino da Casa Branca.

A retórica afiada teve novo pico este semestre. A atitude de Trump na cimeira dos G7 no Canadá mereceu de Merkel o adjetivo «deprimente». À entrada da polémica cimeira da NATO de julho, Trump classificou a relação entre a Alemanha e a Rússia como «inapropriada» e atacou Berlim por ser uma marioneta de Putin: «totalmente controlada por Moscovo».

O nível retórico confirma que as lideranças não morrem de amores uma pela outra. Isso não seria importante se não fosse revelador de profundas divergências que põem em causa a ordem e a segurança europeias. 

A conceção que Trump tem da política coloca Merkel como antagonista. A Alemanha não é um parceiro nem um aliado. É um adversário. Sobretudo em três áreas políticas de enorme sensibilidade.

Primeiro, a imigração. A linha dura contra os imigrantes é definidora do perfil político de Donald Trump. Provar que a Alemanha errou quando abriu portas é mais decisivo do que batalhar pelos méritos da sua proposta de fechamento. Mantendo o resto constante, Trump terá sido vindicado se Merkel e a Alemanha falharem. Não é por acaso que Steve Bannon, o ideólogo da Administração Trump, tem sido muito ativo na construção da Internacional Populista, federando os movimentos anti-imigração e anti-UE por todo o espaço europeu.

Segundo, o comércio. Como a noção de diplomacia de Trump é construída em termos transacionais, os excedentes comerciais de Berlim deixam-no louco. Cada Mercedes que circula em Manhattan é, avaliando as palavras do presidente, uma ameaça à segurança nacional. As tarifas impostas pela Administração à indústria automóvel germânica são um ataque ao coração da economia alemã. E há mais pontos de fricção no caminho. Desde logo o projeto Nord Stream II.

Propriedade da Gazprom, o gasoduto de 9,5 mil milhões de euros trará 55 biliões de metros cúbicos adicionais de gás russo à União Europeia através da Alemanha, contornando os habituais países de trânsito (Ucrânia, Polónia e Bálticos). Do ponto de vista estritamente económico (politicamente a conversa é outra) o Nord Stream II faz sentido porque liga oferta e procura. Trump é um feroz opositor do projeto: ele quer promover os terminais de gás natural liquefeito na Europa para escoar a produção americana. E ainda há o negócio de muitos zeros que envolve a compra de 85 aviões por parte da Luftwafe. Trump quer que os concorrentes americanos fiquem com o negócio. 

A Europa, aos olhos de Donald, é mais um espaço de competição do que cooperação. Isso conduz à terceira diferença substancial entre ambos: a visão do mundo. Trump olha para a ordem liberal e multilateral como um arranjo de elites corruptas que não servem os interesses americanos – apesar de por eles ter sido moldada. Tirar Merkel do caminho é um passo decisivo para Trump alcançar o objetivo de desconstrução liberal. Mesmo que para isso tenha de sacrificar os aliados.