‘Laranja’ mecânica…

‘O mal-estar no PSD é público e notório. Rui Rio começou a desiludir, mesmo os crentes, desde que, mal eleito, correu a São Bento ao encontro de António Costa, para celebrar apressadamente acordos interpartidários com um aperto de mão para a fotografia e partilhar cumplicidades que não se recomendavam’

O mal-estar no PSD é público e notório. Rui Rio começou a desiludir, mesmo os crentes, desde que, mal eleito, correu a São Bento ao encontro de António Costa, para celebrar apressadamente acordos interpartidários com um aperto de mão para a fotografia e partilhar cumplicidades que não se recomendavam.

Agravou a ‘fotografia’ ao puxar Elina Fraga para o seu lado, como vice-presidente do partido, sem histórico, e que se distinguira, enquanto bastonária dos advogados, pela acrimónia destemperada contra a então ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz.

Depois, o distanciamento do grupo parlamentar, impondo a substituição do líder da bancada por Fernando Negrão, foi outra bravata inconsequente, com sequelas posteriores nunca resolvidas.

Desde que sucedeu a Pedro Passos Coelho, o novo líder social-democrata não acertou o passo com a oposição e tem-se desdobrado em ziguezagues desconcertantes, a ponto de já ser visto como candidato a vice de um futuro Governo de Costa.

Este comportamento político, baço e sem rasgo, conformado em ser ‘muleta’ do PS, só poderia causar um abalo estupefacto, tanto no interior como fora do partido.

Ao ouvi-lo dizer que «muita gente, mesmo dentro da política, reduz a oposição a dizer mal do Governo, eu acho que não» ou que «as eleições não se ganham, as eleições perdem-se», fica-se perante um leque de convicções, amassadas em lugares comuns, que deixarão certamente desvanecido António Costa. Mas este vazio de ideias, traduzido numa oposição meiga ou inexistente, é o contrário daquilo de que o Regime precisaria para não se atolar novamente no pântano de que fugiu Guterres. É um quadro monocolor que anestesia o país e agrava a inquietude no PSD. Quando se exigiria nervo à oposição, a liderança social-democrata eclipsa-se ou permanece abúlica, enquanto pelo CDS Assunção Cristas já conheceu melhores dias.E, no entanto, sobejam as perplexidades, desde os graves incêndios de Monchique, que progrediram imparáveis no terreno, até ao descalabro bizarro na CP, ou às falhas do Serviço Nacional de Saúde e do 112, que têm vindo a ser denunciadas.

Perante a repetição do caos em várias frentes, o silêncio da oposição é ensurdecedor, de braço dado com o Bloco e o PCP que, noutros tempos, estariam a destilar indignação nos media e nas ruas. 

Não admira por isso que, nas últimas semanas, se tenham sucedido as manifestações de flagrante rutura com Rio, desde Pedro Duarte a Jorge Barreto Xavier, até à dissidência confirmada de Pedro Santana Lopes, empenhado em formar um novo partido.

Pedro Duarte afirmou, sem papas na língua, que o PSD deve «mudar de estratégia e de liderança tão cedo quanto possível», perfilando-se como candidato, depois de acusar o partido de ser «aliado do Governo socialista».

Disse em voz alta aquilo que muitos sussurram nos corredores, exprimindo um mal-estar que está a contaminar importantes setores ‘laranjas’. 

Foi o caso de Jorge Barreto Xavier, antigo secretário de Estado da Cultura, que assinou um texto contundente no Observador, no qual atribui tiques autoritários a Rui Rio, e, a propósito, aponta a sua decisão, por despacho, de «reter na sede nacional verbas devidas a distritais e concelhias».

Barreto Xavier ilustra os tiques com vários exemplos do passado recente e conclui, irónico, que «alguém tem de explicar a Rui Rio, bem explicadinho, o conceito de democracia».

Alastra, pois, o desconforto no PSD, e as linhas de fratura interna já não se confinam a Luís Montenegro, que foi o primeiro a distanciar-se.

A saída confirmada de Pedro Santana Lopes piorou ainda mais as coisas. Ao fim de 40 anos de militância, e de várias ameaças de divórcio, desta vez oficializou o afastamento em carta aberta aos militantes. Um revés sério para o PSD, que vai causar mossa no partido e sacudir, talvez, a direita. 

Santana não poupa a liderança de Rio e o seu «pensamento económico ortodoxo» com «aproximação ao PS», e uma estratégia de condescendência «para mim, um erro grave».

São sintomas de uma crise impossível de escamotear. Não é um epifenómeno passageiro, próprio de comadres com zangas mal resolvidas.

Afinal, há quem não se reveja na família social-democrata no papel de ‘pau-de-cabeleira’ do PS ou de ‘laranja’ mecânica como ‘pronto-socorro’ do Governo da ’geringonça’. O que é saudável, mesmo que essa fragmentação custe a Marcelo Rebelo de Sousa…

Nota em rodapé 1 – Custa observar a insensibilidade de António Costa, hoje em relação a Monchique, como há um ano sobre Pedrógão Grande. Com o fogo a consumir vastas áreas de floresta, apenas ao quarto dia de destruição de casas e haveres o primeiro-ministro deu sinal de vida, despachando via Twitter uma mensagem de «solidariedade às populações afetadas», devidamente encenada.

Sabia-se onde estava o Presidente da República. Do paradeiro do primeiro-ministro, nada, mistério. Ausente em parte incerta, longe das aflições dos habitantes da serra algarvia – e da repetida desorientação dos operacionais no terreno -, reapareceu, por fim, ao sexto dia de chamas descontroladas, num briefing da Proteção Civil, para dizer que Monchique é a «exceção que confirma o sucesso» no combate aos incêndios, recorrendo ao infeliz soundbyte de que «a vela de um bolo de aniversário todos nós o apagamos com um sopro». A alegoria e o ‘sucesso’ são maus demais.

Quando fica sob tensão, fora da alcatifa, António Costa desatina e o improviso sai-lhe desastrado. Para encobrir a ineficácia do combate ao fogo, encharcam-se depois os media com o aparato em número de homens, de viaturas e de meios aéreos envolvidos, a coberto da novilingua das «ignições» e das «projeções». Um cenário reincidente e inquietante.

A incompetência do Estado ficou outra vez em cena. Perante a repetição do caos em várias frentes, o silêncio do Bloco e do PCP foi ensurdecedor. Noutros tempos, nem sequer distantes, estariam a destilar indignação nos media e nas ruas. 

Nota em rodapé 2 – O ainda chefe de Estado-Maior do Exército deslocou-se pela segunda vez ao Parlamento, em sede de comissão especializada, para ser ouvido sobre as trapalhadas e contradições à volta do roubo de armas e munições em Tancos.

Para espanto dos deputados, o general Rovisco Duarte declarou, soberbo, que «não sei o que estou aqui a fazer».

Perante o impasse das investigações, que duram há mais de um ano sem resultados visíveis, e o seu comportamento errático num caso que envergonha aquele ramo das Forças Armadas, saberá acaso o CEME o que está a fazer à frente do Exército? E o que inibe o Presidente da República, que é também comandante chefe das Forças Armadas, de exigir o afastamento do general e do ministro da Defesa, que o tem secundado na triste figura?

Nota em rodapé 3 – A propósito de triste figura, nunca será demais lembrar Francisco Louçã e Catarina Martins, que entraram em contramão, deixando cair a máscara no caso do ex-vereador Ricardo Robles e do seu prédio em Alfama, posto à venda em imobiliária de luxo, com lucro estimado de 400%, como qualquer especulador que se preze.

Os comentários de ambos nas televisões foram patéticos.  Pareciam fidalgos arruinados a ‘mandar às malvas’ os princípios para salvar a honra da família, caída em tentação no ‘capitalismo selvagem’. 

O Bloco de Esquerda perdeu o pé. O «erro de análise» de Catarina Martins e de Francisco Louçã foi um despiste sério na ‘geringonça’, com indisfarçável gozo do PCP e até do PS. Ambos defenderam o indefensável. Ambos se cobriram de ridículo. O aburguesamento e a partilha do poder estragaram-lhes a plumagem virtuosa com a qual costumam enfeitar-se… Uma tristeza.