Paul Gascoigne. A viver a oitava vida para não ir já ter com o pai

Foram mais de 20 anos de incontáveis tratamentos de desintoxicação e consecutivas recaídas para um dos mais excitantes futebolistas ingleses de sempre. No leito de morte, o progenitor traçou-lhe o destino: «Não vais demorar muito a vir ter comigo.» E tudo mudou para Gazza. 

Para qualquer apaixonado de futebol que já tivesse idade suficiente para se deixar fascinar pelos artistas da modalidade nos anos 80 e 90, Paul Gascoigne é uma referência incontornável. No Newcastle, no Tottenham, na Lazio e no Glasgow Rangers, o médio espalhou o perfume do seu talento, mas foi sobretudo com a camisola da seleção inglesa que encantou o mundo, principalmente no Mundial 90 e no Euro 96 (quem não se lembra do chapéu sobre o pobre central escocês Colin Hendry antes do remate para o 2-0 inglês?).

Com Gascoigne, o problema foi que o mediatismo e a fama se foram espalhando quase na mesma medida devido ao que fazia nos relvados… mas também fora deles. E, neste caso, por motivos inversamente proporcionais: se no campo era genial, na vida pessoal colecionava comportamentos a todos os níveis reprováveis e totalmente desfasados das exigências a que um atleta profissional tem de obedecer.

São incontáveis, especialmente nos últimos 20 anos, as notícias de distúrbios causados por Gascoigne – ou com influência direta sua -, sempre devido ao consumo completamente desregrado de bebidas alcoólicas e drogas que o levou já por dezenas de vezes a dar entrada em clínicas de desintoxicação. E, se a sabedoria popular assevera que os gatos têm sete vidas, a verdade é que Paul Gascoigne é bem capaz de já ir na oitava.

A artista que ajudou à mudança

Há cerca de ano e meio, foi fotografado a sair de um táxi envergando apenas um roupão… que se abriu quando pôs os pés no chão e tropeçou, deixando à vista um corpo nu, raquítico e que mostrava um homem de 50 anos às portas do colapso total.

O fim adivinhado uma e outra vez, todavia, não aconteceu. Mais: hoje, quem visitar a conta de Twitter de Gascoigne vai ver um homem de bem com a vida, seja a jogar golfe, a pescar ou a posar junto ao jacuzzi que mantém na sua residência. Muito ativo nas redes sociais – responde com frequência aos seus seguidores -, com um sentido de humor bastante apurado e numa forma física invejável para qualquer homem de 51 anos, parece outra pessoa em relação ao cadáver ambulante que se arrastava de forma errática até há bem pouco tempo.

Para esta mudança total, muito terá contribuído a morte do pai – o que é curioso, pois várias das recaídas de Gascoigne ao longo da sua vida eram espoletadas precisamente pela perda de entes próximos, como a de um grande amigo em 1999 ou a de um sobrinho, que se suicidou com 22 anos no início de 2017. Desta feita, porém, tudo foi diferente. No seu leito de morte, o pai de Gazza ter-lhe-á dito «Não vais demorar muito a ir ter comigo». E estas palavras produziram – aparentemente – o clique que faltava ao antigo internacional.

Sóbrio desde 2 de dezembro do ano passado – de acordo com o próprio -, altura em que deu entrada pela enésima vez numa clínica de desintoxicação, Paul Gascoigne está inclusivamente numa relação séria com Sara Lovatt, diretora de uma galeria de arte de 49 anos que o tem ajudado a lutar contra as adições. «Desde que continue a acordar de manhã, tudo estará bem. Ainda não derrotei os meus demónios, mas estou a aprender a lidar com eles e isso faz toda a diferença», revelou recentemente o antigo jogador, que em janeiro doou 1100 euros a uma menina com incapacidade a quem havia sido roubado um aparelho que usava para comunicar com a família. Nos últimos meses, de resto, têm sido várias as ações de solidariedade social que tem levado a cabo ou onde se tem inserido, numa demonstração clara de que os dias de alienação total parecem estar definitivamente para trás.

Algarve era predileção para o vício

Os problemas de Gascoigne com o álcool nunca foram segredo para ninguém: logo nos primeiros anos de carreira, após uma bebedeira com um amigo, atropelou uma pessoa e fugiu do local. Em 2001, aos 34 anos e quando representava o Everton, fez a primeira cura de desintoxicação (conhecida). Dois anos mais tarde, voou para os Estados Unidos para repetir o processo, chegando à clínica de Phoenix completamente embriagado depois de horas a beber no pub do aeroporto de Heathrow e no próprio avião.

Em 2008, foi internado de urgência com uma overdose, já depois de ter sido admitido num hospital em Portugal praticamente no mesmo estado – são bem conhecidas, de resto, as suas ‘façanhas’ com a bebida em Vilamoura e Albufeira -, e terá pedido aos paramédicos para o deixarem morrer. Cinco anos depois, seria encontrado à porta de um hotel em Londres em adiantado estado de embriaguez… e com duas garrafas de gin nos bolsos. Isto, depois de ter perseguido e agredido a ex-mulher – bem como um segurança de uma estação de comboios -, cuja relação conflituosa já datava dos anos 90. Acabou detido e acusado de duas agressões, sendo que no início desse ano havia iniciado novo tratamento de desintoxicação, pago por ex-colegas no futebol. «Isto vai inspirar-me para que eu não deixe voltar a acontecer. Não quero morrer», dizia, então com 45 anos, embora admitindo ter “saudades de beber um copo”.

O grande problema foi que, com Gascoigne, nunca era só um copo. Em julho de 2016, protagonizou a já citada – e degradante – cena do roupão aberto: era nessa figura que ia comprar álcool e cigarros. Seis meses depois, teve de receber tratamento hospitalar após se envolver em confrontos com outros utentes de um hotel em Londres, que terão envolvido insultos racistas. Tudo bem regado a álcool, obviamente.

«Às vezes estou de bom humor, mas de repente acordo e tenho uma garrafa de gin na mão. E começo a pensar: ‘De onde é que isto veio?’», dizia em maio de 2017, meses depois de nova recaída, provocada pelo suicídio do sobrinho. O próprio Gazza chegou a tentar o suicídio em mais do que uma ocasião. Escusado será dizer que a fortuna que conseguiu enquanto jogador – cerca de dez milhões de euros – já tinha desaparecido por completo há muito tempo: terá ficado a dever mais de 11 milhões ao Fisco, por exemplo.

Hoje, tudo é diferente. Que se mantenha assim é o que esperam os milhares (milhões?) de amantes de futebol que ainda recordam, com os olhos a brilhar, as jogadas geniais de um dos grandes badboys da história do futebol inglês. J