Uma viagem a lugares misteriosos que começou num pronto-a-vestir

Em cima de uma mesinha de madeira repousava um livro cujo tema estava em perfeita sintonia com o espírito da loja. O título era Primal Arts (Artes Primitivas, ed. Thames & Hudson). Enquanto esperava, entretive-me a folheá-lo – com muito cuidado, pois o exemplar estava bastante maltratado, as folhas a soltar-se da lombada.

Havia naquela loja de roupa para senhora algo de diferente. Tanto o ambiente como os vestidos de padrões originais e cores vivas faziam pensar em paragens exóticas. Segundo as etiquetas, tudo era produzido em aldeias remotas da Índia de acordo com métodos artesanais de estampagem.

Mas eu não estava assim tão interessado nos trapos. Depois de uma vista de olhos rápida pelas prateleiras e cabides houve outra coisa que me prendeu a atenção.

Em cima de uma mesinha de madeira repousava um livro cujo tema estava em perfeita sintonia com o espírito da loja. O título era Primal Arts (Artes Primitivas, ed. Thames & Hudson). Enquanto esperava, entretive-me a folheá-lo – com muito cuidado, pois o exemplar estava bastante maltratado, as folhas a soltar-se da lombada.

Gostei tanto do que vi que fiquei cheio de vontade de o levar comigo. Mas obviamente havia um problema: estava num pronto-a-vestir e não numa livraria.

Ao chegar a casa fiz uma pesquisa online e acabei por encontrar um exemplar não muito caro num antiquário da Alemanha. Procedi de imediato à encomenda, pois tratava-se do tipo de livro que só graças a um golpe de sorte extraordinário (ou talvez nem assim…) arranjaria em Portugal.

A primeira impressão revelou-se certeira. Os textos tinham informação interessante sobre as peças mostradas. Mas o que voltou a deslumbrar-me foi o verdadeiro banquete de cultura visual que desfilava pelas páginas.

Em geral, ao olhar para estas obras de arte dita primitiva, ficamos tão fascinados pelas suas formas que esquecemos que não foram produzidas para serem arte, mas sim máscaras ou ídolos, bancos ou tronos, colheres ou travessas, cintos, colares ou instrumentos musicais.

Para evitar esse equívoco, a autora cita uma passagem de um livro chamado L’Or des Îles, de Susan Rodgers: «Que contraste entre uma peça exposta num moderno museu de arte primitiva e a mistura de varas mágicas, anéis para lançar feitiços e relíquias ancestrais que cercariam um feiticeiro Toba Batak no século XIX: o museu contém uma coleção de ‘coisas’ silenciosas em madeira, metal ou pedra, enquanto o tesouro do datu Toba teria transbordado com a energia sagrada nascida de seu contacto com o sobrenatural».

A chamada de atenção é pertinente. Importa conhecer o contexto em que estes objetos foram produzidos e para que serviram. Mas julgo que nem quando estão guardados nas vitrinas de museus de países desenvolvidos (e muitos pertencem a uma estupenda coleção suíça) eles ficam em silêncio. No meu caso, o simples facto de os ver em fotografia transportou-me para lugares misteriosos – mesmo aprisionados nas páginas de um livro parecem manter intacta a sua ‘energia sagrada’. Na realidade, pergunto-me se não terá sido esse estranho magnetismo que atraiu pela primeira vez o meu olhar na loja de roupa.