A mão de Deus e os pés dos ambientalistas

Faz pouco tempo, o episódio correu mundo. Porque foi gravado pelas câmaras de televisão e a lição de Emmanuel Macron é reveladora do sentido de Estado que deve pautar o comportamento de um Presidente da República. Em junho, um jovem estudante resolveu armar-se em parvo numa cerimónia oficial de evocação do 78.º aniversário da Resistência…

Faz pouco tempo, o episódio correu mundo. Porque foi gravado pelas câmaras de televisão e a lição de Emmanuel Macron é reveladora do sentido de Estado que deve pautar o comportamento de um Presidente da República.

Em junho, um jovem estudante resolveu armar-se em parvo numa cerimónia oficial de evocação do 78.º aniversário da Resistência Francesa à ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial: «Ça va, Manu?», foi a forma insolente como se dirigiu ao Presidente francês o adolescente que acabara de cantar A Internacional em vez do hino nacional, A Marselhesa, e do hino da Resistência, O Canto dos Partisans.

Macron parou e, fixando-se nos olhos do jovem guedelhudo, não vacilou: «A mim chamas-me Senhor Presidente ou Senhor. Estás numa cerimónia oficial e portas-te como deve ser. Podes comportar-te como um imbecil, mas hoje é dia de cantar a Marselhesa e o Canto dos Partisans». Mas disse mais: «No dia em que quiseres fazer a revolução aprende primeiro a tirar um diploma, a sustentar-te a ti mesmo. Então poderás dar lições aos outros. Compreendes?».

E o jovem respondeu, sem baixar os olhos mas baixando a guarda: «Sim, Senhor Presidente».

Emmanuel Macron, por muito mais mas também por este sintomático episódio, tem vindo a revelar-se um líder europeu carismático, merecedor de respeito, com personalidade e sabedor do rumo que quer para a França, para a Europa e para o Mundo.

Macron impôs-se na política num momento crítico para os franceses, com líderes de esquerda e de direita desacreditados, a contas com a Justiça e politicamente esvaziados. Surgiu quase como um produto de marketing, como uma criatura com pouco currículo partidário e com peso político insuficiente para se afirmar por si só. Mas tem-se revelado melhor do que a encomenda. Com posições corajosas, firmes e reveladoras de caráter e de convicções, sem se agachar perante líderes mundiais com muito mais poder, como Trump ou Putin, ou com muito mais experiência, como Merkel.

Muito diferente é o Presidente português. Marcelo andou a vida toda a preparar-se para o exercício do cargo. O seu marketing político fá-lo ele próprio e melhor do que ninguém.

Marcelo tem, indiscutivelmente, sentido de Estado. Sabe o que deve e como deve fazer. E estar.

Mas não resiste a ser diferente e a vincar essa diferença.

Aparece em calções de banho a falar aos jornalistas, às televisões, ao país. Tira selfies abraçado a outros banhistas. Rompe o protocolo e as regras de segurança sempre que lhe dão uma oportunidade.

É assim, não resiste.

Por isso a presidência de Marcelo Rebelo de Sousa é singular e irrepetível.

E a verdade é que a forma como tem exercido o cargo tem merecido aprovação unânime: do povo, dos seus parceiros titulares de altos cargos políticos, de comentadores e opinadores.

Por isso, mesmo que Marcelo tenha uma fortíssima tentação para fazer a partida a todos e anunciar que não se recandidatará em 2021, vai-lhe ser muito difícil cumprir essa desfeita.

E bem pode dizer que «está na mão de Deus» – quem não se lembra do seu «nem que Cristo desça à Terra»?

Marcelo já vai ficar na História pela diferença. E acredito que a sua mais forte tentação seja mesmo ter o gozo supremo de dizer que não se recandidata contra todas as expectativas – até porque não lhe será possível, nem a idade lhe permitirá, manter o ritmo alucinante da sua agenda.

Mas também acredito que acabará por recandidatar-se e corrigirá alguns erros que só a Marcelo se perdoam e que levam a que o Presidente da República, de fato e gravata, receba em audiência ambientalistas de t-shirt, calções e chanatos, como se a Junta de Freguesia de Almancil não fosse local com dignidade maior do que um bar num areal e a ocasião não merecesse traje mais solene do que o próprio para acompanhar um amigalhaço numas cervejas e tremoços.

Na Faculdade de Direito, Jorge Miranda recusava fazer orais aos estudantes que se apresentasem de camisa aberta e sem gravata – pedissem uma emprestada, nem que destoasse, ou viessem na época seguinte vestidos com o rigor que a praxis e a presença perante o júri avaliador exigia.

Marcelo não exigia, mas ele próprio não fazia uma oral sem gravata.

Daí ter começado esta crónica com a lição de Macron ao insolente fedelho.

Em cerimónias oficiais, o Presidente não se trata por Manu, Marcelo, você, tu ou ele. Trata-se, como Macron bem disse, por Senhor Presidente ou por Senhor.

E a uma audiência com o Senhor Presidente não se vai de calções, de t-shirt ou de chinelos ou alpercatas. É elementar. 

Não é por Marcelo, que até pode não se importar (mas importa-se, ainda que jamais o confesse). É pelo Presidente da República.

E não é pela falta de educação (sempre de lamentar). É pela autoridade do Estado, que começa a perder-se assim.