Naipaul. 1932-2018: Nobel da Literatura em 2001

Podia ser implacável com os seus interlocutores, e tinha por hábito desligar o telefone aos jornalistas ou abandonar uma sessão pública quando o aborreciam ou irritavam as perguntas que lhe dirigiam. Se não hesitava em juntar outro nome à sua longa lista de inimigos e detratores, parecia tirar prazer de causar desconcerto, mostrar-se difícil, até…

Podia ser implacável com os seus interlocutores, e tinha por hábito desligar o telefone aos jornalistas ou abandonar uma sessão pública quando o aborreciam ou irritavam as perguntas que lhe dirigiam. Se não hesitava em juntar outro nome à sua longa lista de inimigos e detratores, parecia tirar prazer de causar desconcerto, mostrar-se difícil, até temperamental. 

V.S. Naipaul, o escritor britânico de origem indiana, tido por muitos como o maior romancista do seu tempo, e galardoado com o Nobel da Literatura em 2001, morreu a 11 de agosto aos 85 anos. Tinha uma expressão ameaçadora. O rosto de falcão desenhado pelos olhos que do cansaço tinham feito uma forma de dureza, com um controlo impecável da voz, adquirido na juventude, ao editar um programa de rádio no Serviço Caribenho da BBC. Aproveitando-se da imagem distante do grande escritor, depressa punha em sentido aqueles que se lhe dirigiam. 

Vidiadhar – ou apenas Vidia, como era tratado pelos mais próximos – Surajprasad Naipaul tinha 11 anos quando o desejo de se tornar um escritor começou a visitá-lo. Diz não ter demorado muito para que se tornasse uma ambição enquistada no seu espírito e tomou como um mistério o facto de isto ter acontecido muito antes de ter esboçado qualquer texto. Mais tarde, quando lhe perguntavam quem eram o seus escritores preferidos, a resposta era: «O meu pai». Seepersad, chamava-se o pai, um repórter no Trinidad Guardian que, contrariamente aos irmãos, tivera a oportunidade de frequentar a escola e cuja grande aspiração era viver como ficcionista. 

Nascido em Chanaguanas, na mais populosa das ilhas da antiga colónia britânica, o avô paterno de Vidia viera da Índia, no séc. XVIII, como servo contratado para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar. Como James Wood referiu num ensaio de 2008, Naipaul é o escritor que ao longo da sua vida, e mesmo depois de ter forjado uma das mais ilustres carreiras literárias da segunda metade do século passado, nunca se libertou da sua ilha natal, «regressando obsessivamente à luta, à vergonha e à fragilidade dos primeiros anos de pobreza que viveu em Trindade; à improvável jornada que fez desde uma orla do Império Britânico até à metrópole central», e isto sem se livrar do estado de «precariedade, como ele o entendia, da sua longa vida em Inglaterra».

Se a condição do exílio é um dos traços fundamentais transversal à obra de muitos dos escritores que marcaram a literatura do séc. XX, Naipaul encarnava plenamente a sensação de estar deslocado. Tendo abandonado definitivamente a antiga colónia britânica, nunca chegou a sentir-se em casa em Inglaterra ou em qualquer outro lado. E quando o Nobel lhe foi atribuído, a Academia Sueca descreveu-o como um «circum-navegador literário que só se sentia realmente em casa estando próximo de si mesmo, dentro da sua inimitável voz».

Na sua extensa obra, Naipaul prova uma enorme sensibilidade e sintonia com as mudanças históricas, de tal forma que a sua autobiografia – e vários dos seus romances, incluindo aquele que o lançou e se manteve o mais famoso, Uma Casa para Mr. Biswas (1961), são profundamente autobiográficos – se sobrepõe à vasta história do Ocidente. 

Hindu não praticante, com os anos, foi deixando que o seu pessimismo aflorasse de forma cada vez mais insistente na sua obra e, no entanto, foi sempre um defensor da civilização ocidental. Sendo considerado um dos grandes romancistas do seu tempo, por muitos talvez até o maior, a partir de certa altura começou a mostrar-se frustrado com as limitações da ficção. Defendia que o romance tinha atingido o auge no séc. XIX e que o modernismo estava morto. Confessou até que só escrevera o romance Half a Life (publicado no ano em que ganhou o Nobel) para cumprir o contrato que tinha com o editor. Para Naipaul, era no campo da não ficção que estavam as novas fronteiras que cabia agora explorar. A hibridez desse género colocava-o, segundo ele, numa posição mais vantajosa para capturar as complexidades do mundo em que vivemos.

Os seus livros de viagens ganharam ascendente face aos romances e são muitos os escritores que assumem a influência do seu estilo, as possibilidades literárias que os seus modos de ver e descrever o mundo lhes abriu. Naipaul dizia preferi-los aos seus romances e o certo é que não dispensou muitas das conquistas formais destes.

Como Kenneth Ramchand defende no obituário dedicado ao escritor no Guardian, Naipaul tornou-se o cínico poeta do pós-imperialismo e o peculiar profeta da violência, da desorientação global. Por isso mesmo, muitos consideram-no o primeiro escritor moderno global. 

*com Diogo Vaz Pinto