Alex Perry. ‘Na Calábria as pessoas vivem regras equivalentes às do Boko Haram’

Lea Garofalo era filha de um chefe da máfia calabresa, a  ‘Ndrangheta . Em 2009, foi assassinada pelo marido depois de ter testemunhado contra a organização. Esta é a história das três mulheres que fizeram frente a uma das organizações criminosas mais poderosas do mundo.

Anualmente fatura mais dinheiro do que a Microsoft, é responsávelpor 70% do tráfico de cocaína na Europa, tem ramificações em 120 países e já chantageou Governos. A ‘Ndrangheta (proncuncia-se an-drang-guét-a) é uma máfia sedeada na Calábria, no Sul da Itália, e existe há cerca de 150 anos. Apesar de os seus mentores estarem debaixo dos radares da justiça italiana, até há não muito tempo o seu grau de influência era pouco claro e a fechada estrutura interna – que assenta num retorcido conceito de família em que as mulheres são elementos de segunda e os rapazes educados para ser criminosos – sobejamente desconhecida. A procuradora italiana, Alessandra Cerrett mantinha no entanto a esperança secreta de que seriam as mulheres a levantar o véu da estrutura.

O palpite estava certo. Lea Garofalo, Giuseppina Pesce e Maria Concetta Cacciola testemunharam contra a organização. Queriam um futuro sem medo nem violência para os seus filhos. Lea e Maria Concetta foram assassinadas, mas a sua coragem fez mossa na ‘Ndrangheta. É esta a história de As Boas Mães (Vogais, ed. 20|20 ), do jornalista Alex Perry, que esteve há dias em Portugal. O livro está disponível para venda a partir do dia 3 de setembro.

 

O início da ‘Ndrangheta remonta à unificação de Itália, na segunda metade do século XIX. As pessoas ainda sentem isso na Calábria, um fosso entre o Norte e o Sul do país?

Surpreendeu-me encontrar um verdadeiro ressentimento para com o Norte de Itália amplamente partilhado. E não é – como devo dizer? – um preconceito vindo de pessoas com menos instrução. Falei com médicos e advogados do Sul que continuam a dizer: ‘Sim, a unificação de Itália foi um ato de colonização do nosso ponto de vista’. E é por isso que as máfias calabresa e siciliana cavalgaram nessa opinião, nesse ressentimento. Eles cobriram-se a si próprios com uma espécie de manto de verdade e de justiça para dizer: ‘Somos os campeões do Sul, estamos a proteger-vos do Norte’.

Penso que a maioria das pessoas imagina esse quadro que está a relatar há uns 50 ou 60 anos, não hoje.

Definitivamente, mas devo dizer que como jornalista cobri a Irlanda do Norte e a perguntei a muitas pessoas quando tinham começado os problemas e as pessoas respondiam-me que tinha sido em 1969. Para ser honesto faz-me ter noção que de onde venho, no Reino Unido, somos completamente ignorantes da História. Mas na Itália está é uma História viva. Na Calábria a ‘Ndrangheta e as populações noutras vilas falam grecânico, um dialeto do século XI!

Em Itália, ainda hoje, há muita gente que tem dificuldades em exprimir-se em italiano e fala os dialetos como línguas maternas. Estava ciente desta característica do país?

Descobri isso quando comecei a escrever este livro. Comecei como um verdadeiro ignorante. Não conhecia a ‘Ndrangheta, descobri a história quando estava na Sicília a escrever um outro artigo sobre a crise de migrantes, mais especificamente sobre o envolvimento da máfia nessa crise. E, portanto, tudo foi uma surpresa para mim. Não tinha noção que a máfia fosse outra coisa qualquer para lá do que aparecia nos filmes lendários. Demorei dois anos e meio a escrever este livro mas todo o processo foi de descoberta.

Podemos dizer então que era, como descreve no livro, como um daqueles turistas que aparecem na Sicília, depois de O Padrinho estrear nos EUA, à procura de Corleone sem fazer a mínima ideia de que a máfia estava ainda profundamente entranhada em Itália e que aquelas décadas de 1980 e 90 ficaram conhecidas por la mattanza dado o elevado número de homicídios?

Sem dúvida. E sempre me considerei uma pessoa informada: já fui correspondente em cerca de metade dos países do mundo, por isso considero que sei alguma coisa do mundo. Descobrir esta enorme organização criminal com uma presença em 120 países, que faz mais dinheiro do que a Microsoft e da qual eu nunca tinha ouvido falar, nem sabia soletrar o seu nome… Foi muito impressionante, e foi também um alerta para que talvez não sejamos tão espertos ou informados como achamos que somos.

Em Portugal, outro país do Sul da Europa, não me recordo também de alguma vez ler alguma notícia sobre a ‘Ndrangheta – que, como relata no seu livro, tem uma das suas rotas de cocaína inteiramente falada em português. Como é que uma organização desta dimensão passa ao lado do radar?

Se recuarmos dez anos, nem o Governo italiano sabia realmente o que se passava. Sabiam que a ‘Ndrangheta existia, mas não sabiam que era mais do que uma organização espalhada por aldeolas, com pessoas de fatos empoeirados e armas que faziam uns roubos à mão armada em trattorias [restaurantes]. Ninguém sabia que eles controlavam a maioria da cocaína na Europa (70%). Portanto, se mesmo as pessoas cujo trabalho era persegui-los não tinham ainda percebido, talvez possamos desculpar a nossa própria ignorância. Mas penso que depois do legado deixado pela história das mulheres que conto no livro não temos mais desculpas, elas expuseram a organização ao mundo, ao governo italiano e ao Estado. Mas uma das principais razões por que escrevi o livro foi efetivamente por este ser um assunto que desconhecia e que devia ter conhecido antes. Durante o processo de escrita e depois disso, a Alemanha pegou nas lições das ‘Boas Mães’ e está a investigar a ‘Ndrangheta. Em janeiro deste ano houve detenções maciças depois de uma operação em 170 restaurantes; Espanha, França e Holanda também estão a tomar medidas e o FBI também está em cima do assunto. O Canadá tem a sua própria guerra contra a ‘Ndrangheta a decorrer e estão muito cientes do que se passa. O único país que, ainda por cima, era o que deveria estar mais ciente da situação e não está é o meu, o Reino Unido.

Por que diz que é o país que deveria estar mais ciente?

A ‘Ndrangheta lava todo o seu dinheiro em Londres e não há um único polícia inglês que consiga soletrar a palavra ‘Ndrangheta. Tenho estado com especialistas em crime organizado nos últimos 8 meses e tenho que soletrar a palavra para eles. So-le-trar (risos).

Isso é um sintoma do que relata neste livro: quando o cerco começou a apertar na Calábria, a organização começou a espraiar-se principalmente para centros financeiros.

Sim, era uma coisa muito lógica a fazer. De repente o Estado italiano fica com uma ideia da estrutura da organização, sabe como atacá-la e às suas finanças, e por isso a reação da ‘Ndrangheta é mudar todo o seu dinheiro para fora de Itália.

Até porque Itália tem políticas muito agressivas relativamente à máfia e leis muito permissivas relativamente à vigilância, certo?

Sim, é fantástico. De um ponto de vista técnico é impressionante, de um ponto de vista legal… Bem, não creio que as coisas que eles fazem sejam legais em qualquer outra parte do mundo (risos).

Mas quando os criminosos vivem em bunkers debaixo de casa das avós, como conta no livro, é difícil contornar isso! Parece ficção científica.

Sim, é verdade! Mas depois há coisas surreais também relativamente às escutas – acho que o mencionei no livro para as pessoas terem noção do quão técnico isto é. Uma vez os investigadores levantaram uma estrada, apetrecharam-na de microfones, voltaram a pô-la no sítio para conseguir ouvir um membro da máfia que passava lá regularmente. É extraordinário! Mas também em Itália, tendo em conta o que eles estão a enfrentar, os argumentos sobre privacidade provavelmente não interessam.

Voltando aos primórdios da ‘Ndrangheta, relata que os primeiros ‘ndranghetisti se encontraram com os maçons na prisão e inspiraram-se neles para construir a sua própria lenda.

Toda a ideia que eles têm de homens de honra e uma certa retidão é uma mentira, uma invenção. Não há na história documentos que suportem a lenda dos três cavaleiros de Espanha [que, supostamente, fundaram as três principais máfias do Sul, em Nápoles, Sicília e Calábria]; não há código de ética e de defesa da liberdade do Sul. Antes de a ‘Ndrangheta ser uma organização não passava de um bando de criminosos de péssima reputação. E é muito difícil manter uma organização coesa e com disciplina se as motivações são apenas ‘vamos fazer coisas más para ganhar muito dinheiro’, isso não é muito inspirador.

Eles precisavam de uma aura, então.

Sim. Precisavam de sentir que seguiam um caminho elevado e como não tinham uma cultura que os regulasse, inventaram uma. E seguiram esta deixa após conhecerem os maçons que tinham uma hierarquia impressionante e, nessa altura [por volta de 1860], estavam a lutar essencialmente pela liberdade contra a aristocracia. Estes dois tipos de pessoas, criminosos e maçons, encontraram-se na prisão ao mesmo tempo e os criminosos acharam que os maçons eram impressionantes: pessoas que estavam a lutar por uma causa além do seu próprio bolso e, essencialmente, roubaram as suas ideias e toda o aspeto cerimonial.

Um dos rituais da iniciação da ‘Ndrangheta é revelador do que se espera dos filhos da organização. Os bebés rapazes são colocados em cima de uma cama com uma faca perto de uma mão e uma chave perto da outra, e cabe à mãe, com pequenos toques, guiar a criança até à faca. Recorda-se de mais rituais?

Eles variam de clã para clã. E isso provavelmente diz-nos alguma coisa de como isto é uma completa invenção. Todos têm também uma versão diferente sobre a história dos tais três cavaleiros e isto é porque toda a gente está a inventar. O que realmente me fez rir foi quando entrevistei dois historiadores sérios italianos e outro tipo, John Dickie, no Reino Unido, que é uma espécie de historiador da máfia e que me permitiu ver como os mafiosos tinham ido buscar pequenas partes dos mitos antigos e da própria História para criar o seu próprio mito. Misturaram ideias do Hércules com passagens da II Guerra Mundial e assim por diante.

Essa história faz-nos rir mas não deixa de ser perigosa: afinal, resultou numa organização criminal com esta dimensão.

Acho que agora vemos melhor isto com a comparação com as fake news. O problema não é ser uma mentira, é as pessoas acreditarem nisso, é o poder dessa mentira. Podemos rir-nos disso, mas não a compreendermos não torna essa mentira menos perigosa. Aliás, até fica mais.

A procuradora Alessandra Cerreti, que foi quem teve a ideia de usar os testemunhos das mulheres para perceber a organização interna da ‘Ndrangheta, é uma das pessoas que mais critica a espécie de branqueamento feito por Hollywood. Pode falar-me um pouco mais dela?

Acho que não há nenhum tipo de lenda ou de mito popular de que a Alessandra goste. Falámos sobre filmes e livros sobre a máfia e ela detesta-os a todos. Não sei se vai gostar deste ou não [risos]. Para ela, isto não é sobre entretenimento ou uma boa história, isto é apenas a capa ou a decoração debaixo da qual o assassínio, a criminalidade e a corrupção acontecem. E a forma como as pessoas podem ficar fascinadas por esse mito é algo que a horroriza.

Mas no seu livro os procuradores vão ser ‘os bons da fita’.

Não acho que ela ou outros procuradores que conheci sejam motivados pela ideia de ver contada a sua história pessoal. A maioria das pessoas gosta de um bom filme de gangsters, o que para eles é um cancro, é desprezível. A Alessandra é uma pessoa extremamente invulgar. Não há muitas crianças de oito anos a dizerem que, quando forem grandes, querem ser procuradores anti-máfia!

Ela sempre pensou que seriam as mulheres a denunciar a organização por amor aos filhos. Onde foi buscar essa ideia? Falamos de uma mulher absolutamente determinada, que não quis ter filhos devido ao trabalho de que fazia e que fala destas escolhas com muita naturalidade.

Acho que ela é incrivelmente segura de si. Tem um sentido de determinação único que casa com um sentido de missão transversal a todos os procuradores. Acho que o trabalho em si é uma espécie de filtro: tu não consegues fazer aquele trabalho se não fores um certo tipo de pessoa, norteado por certos princípios. Os sacrifícios são enormes. Eles têm que sacrificar ter uma vida normal, têm de dizer adeus à maioria dos amigos e família [devido às constantes ameaças], vivem sob escolta. Muitos destes procuradores lembram-me, na verdade, os monges, com um sentido de missão que é parcialmente definido por se negarem bastante a si próprios e removerem qualquer distração. É uma zelota, de certa forma.

Apesar de todo esse recato ela concedeu-lhe várias entrevistas, conseguiu falar com ela durante oito horas.

Mas não diria que ficámos amigos. Acho que ela me estava a esclarecer e educar e a corrigir a minha ignorância. Inicialmente quando estava a entrevistá-la estava a escrever um artigo que depois resultou no livro e, nessa altura, acho que ela estava ligeiramente horrorizada com a ideia de eu estar a escrever um livro. Do ponto de vista dela, que dedicou a vida dela a isto, e eu estando apenas a trabalhar nisto há uns meses, eu simplesmente não estava qualificado. Mas percebo isso muito bem, até porque como estrangeiro que nem sequer falava a língua… Isso é um dos grandes obstáculos que encontrei durante a minha carreira inteira: fui sempre o estrangeiro, a cair recentemente nas histórias.

Recebeu muitas ameaças quando estava a escrever o livro?

Duas vezes. Uma vez tive uma advogada que se inclinou em cima da mesa e disse-me: ‘Nós temos sempre o que queremos’, que eu acho que era a maneira dela me dizer para quem ela trabalhava realmente. Depois quando fui à vila de Lea Garafolo [a primeira mulher a denunciar a ‘Ndrangheta, que resultou no seu homicídio], Pagliarelle, o único polícia do sítio estacionou atrás de mim, bloqueou-me, pediu-me para sair do meu carro, levou-me até à praça principal e Marisa, a irmã da Lea apareceu, e anunciou que estava pronta para a entrevista. Eu não lhe tinha dito que ia. E depois tivemos uma conversa estranhíssima de 20 minutos em que ela não disse praticamente nada.

No meio da praça?

Sim, ao lado de um café cheio de homens sentados a olhar fixamente para mim. A minha ideia era ir até à vila secretamente, só queria ver o local. Depois da conversa ela tirou-me uma fotografia, tirou uma fotografia ao meu tradutor, pediu-nos os nomes completos e levou-nos até à autoestrada em direção a Roma para ter a certeza de que íamos embora. Na semana seguinte saiu um artigo de duas mil palavras no jornal local que dizia precisamente quem eu era, quem tinha visto, onde tinha ficado, o que tinha comido e a minha história profissional completa, tudo. Foi uma demonstração que queria dizer ‘sabemos onde estás e o que estás a fazer’. 

Descreve a Calábria como uma ‘zona de guerra’. Porquê?

Estive no Afeganistão e no Iraque em trabalho, e numas trinta guerras à volta do mundo. Enquanto conduzi por Rosarno com um homem de negócios italiano, que anda com uma escolta armada e com um jipe à prova de bala com uma metralhadora lá dentro, encontrei uma espécie de cidade fantasma e pensei: ‘Isto lembra-me alguma coisa…’ Lembrava-me Bagdade! Não há ninguém nas ruas, quem há está assustado, nada funciona realmente, muitos edifícios colapsaram ou foram destruídos, o sentimento é exatamente o mesmo que tive numa zona de guerra.

Na Europa.

Na Europa, mas o que é mais bizarro é que este é território da ‘Ndrangheta, eles fizeram isto a si próprios, à sua terra natal. Porquê? Porquê viver em Rosarno quando a cinco milhas está uma linda cidade numa colina chamada Nicotera, que pode estar em qualquer brochura turística? Mas eles vivem no sítio mais feio no fundo do caminho, com estradas inacabadas.

Por que acha que fazem isso, é camuflagem? Fiquei abismada com a quantidade de dinheiro que tinha só uma das famílias que fala no livro, a de Giuseppina Pesce: cada apreensão depois de ela os ter denunciado era na ordem das centenas de milhões de euros.

Mas se os virmos vestidos, todas as roupas que têm no corpo devem andar à volta dos 40 euros. É um completo mistério e acho que a única maneira de o explicar é que eles têm uma vida tão fechada, tão próxima de um culto, que não têm ideia de como o resto do mundo vive e de que tipo de deleites há. Estão unicamente focados num tipo muito local de fama. Giuseppina fala de coisas como ir à loja e ser servida primeiro, de ter descontos, de ir ao hospital e nunca ter que esperar nas filas. Para mim, não me parece suficiente para quem gere um império criminal multimilionário que sai por aí a matar pessoas, mas essa parece ser a motivação: ser o tipo mais importante da aldeia.

Assim como a prisão que, para estas crianças, é vista como…

Graduation [acabar a escola]. São criados assim de pequeninos, a achar que não há uma vida alternativa.

 

O que acha que deu coragema estas três mulheres para romperem com gerações de subserviência? 

Penso que Lea, que foi a primeira a falar com a polícia, era única de muitas formas. Ela não teve ninguém para seguir nem pessoas de fora com quem falar.

Nem tinha ainda as redes sociais como escape, porque quando foi morta, em 2009, o Facebook ainda não era o que é.

Ela tinha-se revoltado contra o marido em 1996, quando testemunhou pela primeira vez. Acho que o caso dela tem a ver com a sua própria personalidade: ela não conseguia submeter-se, não conseguia ser cúmplice. Imagino que deve ter havido outras mulheres como ela no passado da ‘Ndrangheta, que foram provavelmente mortas assim que se começaram a insurgir. Quando ela testemunhou pela primeira vez, o que foi muito intrigante é que não pediu proteção às autoridades, ficou escondida, por conta própria, com a filha, e isso funcionou por seis ou sete anos. Já a Giuseppina e a Maria Concetta eram quase dois opostos perfeitos. Eram amigas, mas a Giuseppina é uma verdadeira calculista, tinha decidido que para ter alguma paz de espírito teria que se tornar uma criminosa, por isso negociou uma posição para si própria. E quando se oferece para testemunhar negoceia na mesma, e aí fá-lo por ela mesma mas também pelos filhos. E acaba por ser ela que sobrevive a isto tudo. A Maria Concetta tem menos controle.

É mais ingénua, pareceu-me.

Sim, é muito naïf, vive na sua cabeça num mundo de sonhos, depois de testemunhar acha que aguenta estar separada dos filhos – dura pouco mais de dois meses antes de desabar. No momento em em que ela fala com a mãe ao telefone está tudo estragado, tem de voltar. E sabe que se voltar vai ser morta, mas fá-lo na mesma. É de partir o coração. Alessandra e Giovanni Musarò, o outro procurador, são das pessoas com mais força e mais duras que conheci, e enquanto eles me estavam a contar essa parte da história percebi como tinha sido difícil para eles.

Falou alguma vez com Denise, a filha de Lea que testemunhou contra o pai [Carlo Cosco, condenado por matar a mulher] ou não conseguiu devido ao programa de proteção das testemunhas?

Basicamente tinha autorização oficial para falar com a Giuseppina e com a Denise, tinha uma data e acabou por acontecer alguma coisa que o impediu. Aconteceu o mesmo com Carmine [um dos capangas de Carlo Cosco, condenado também pela morte de Lea e que, por amor à filha, Denise, acabou por confessar em tribunal onde estava o corpo]. A entrevista estava marcada, voei para Itália e no dia em que nos íamos encontrar ele levou uma sova brutal na prisão, ficou entre a vida e a morte. Isto foi há apenas um ano. Cada vez que me aproximava, acontecia alguma coisa e tenho quase a certeza que por influência da máfia – numa das vezes, porém, acho que teve a ver com um jornalista rival [risos]. Tudo o que me tinham dito sobre a máfia, sobre as suas incertas maneiras de passar mensagens, acho que as experienciei.

Quais são os ecos da história destas três mulheres na Calábria?

Os Pesce [a família de Giuseppina, um dos clãs] estão todos na cadeia e irão estar durante muito, muito tempo. Devido às informações que ela deu, no final da investigação foram confiscados acho que dois ou três mil milhões de euros. As provas dadas por Lea Garofalo ainda estão a ser usadas e a abrir novas linhas de investigação. Essas provas ainda estão a pôr pessoas na cadeia – a última detenção aconteceu há um mês. Maria Concetta sabia menos, por isso o seu grande legado é ser uma inspiração para outras mulheres. Hoje há entre 20 a 25 mulheres que as seguiram e foram testemunhar e fornecer provas. Algumas destas informações terão mais importância do que outras, mas a verdade é que romperam a matemática da invencibilidade. E esse é o legado mais concreto: esta organização quebrou de alguma forma. O legado mais amplo é que a Itália agora conhece a ‘Ndrangheta, a sua estrutura, quem são os chefes, quantas pessoas estão a ser mortas. Elas disseram ao mundo por isso os países estão atentos a esta nova máfia italiana do século XXI. Tenho que dizer mais uma vez que a exceção a essas boas notícias vem do meu próprio país, o Reino Unido, em que a ‘Ndrangheta está a lavar muito dinheiro. Todos os procuradores italianos que conheci queixam-se de que não têm qualquer cooperação vinda do meu país, e presumo que com o Brexit vá piorar. Uma das surpresas para mim é que estes procuradores de Itália não estão triunfantes com o que fizeram, nenhum deles. E penso que isso se deve ao facto de eles pensarem que conseguiram dominar a besta, mas ela não desapareceu.

Cortaram uma das cabeças da hydra, não o bicho.

Sim. No fim do livro, Franco Roberti, chefe do gabinete antimáfia e antiterrorismo de Itália, diz que enquanto a política for subserviente aos negócios, é impossível vencê-los. Essencialmente o que ele está a dizer é que estão a travar uma batalha contra a natureza humana, a corrupção que está em todos nós, e isso leva todos os procuradores italianos a conclusões pessimistas. Eu, particularmente, sinto muito isto porque o motor financeiro desta organização, assim como de tantas outras, é Londres. E o meu Governo não faz NADA em relação a isto.

Mas porque não têm pistas?

O que as autoridades britânicas dizem em relação ao crime organizado é que ele, em Londres, movimenta muitos milhares de milhões por ano. Isso não diz nada, só mostra ignorância completa.

Relativamente às ramificações da ‘Ndrangheta e ao tráfico de droga, conta uma história impressionante: na Guiné-Bissau, há estradas públicas a ser usadas para aterrar aviões.

Descobri isso numa entrevista que fiz lá, é absolutamente surreal. Falei com uma avozinha na Guiné-Bissau, sentada no seu Porsche, ao lado de uma estrada longa e direita num determinado local e ela contou-me que estava ali às 9h30 da noite quando os soldados apareceram e a mandaram para casa. Ela recusou-se e ficou a ver o que ia acontecer. Então os soldados encheram tambores de metal de parafina para iluminar os dois lados da estrada ao longo de um quilómetro, vem um avião, aterra e descarrega duas toneladas de… qualquer coisa [risos] diretamente nos camiões dos soldados do Governo e descola em direção ao Brasil. 

É muito difícil imaginar que isso seja possível em qualquer parte do mundo.

No Mali, no meio do deserto do Saara, há um Boieng 727 que levou dez toneladas e que foi depois destruído pelos traficantes. Hoje, no século XXI, há áreas que são completos buracos negros de informação. Ninguém sabe nada, por isso podem levar-se jatos de passageiros cheios de drogas, várias vezes, e ninguém diz nada.

Como é que isso pode acontecer durante o apogeu das tecnologias?

Olha o exemplo de Rosarno: uma cidade regida por regras medievais onde o homicídio e a misoginia fazem parte do dia-a-dia. Isto é na Europa do século XXI. Ao lado da Sicília, do Etna e do lindo Mediterrâneo, há pessoas a viverem com regras equivalentes às do Boko Haram. É de loucos.

As mulheres que não se oferecem para testemunhar continuam a fazer parte da organização de forma passiva?

E os líderes dos clãs espertos começaram a promover mulheres. Perceberam que tratar as mulheres daquela forma era um problema para a organização, quase da mesma forma que nos anos 90 algumas partes da ‘Ndrangheta perceberam que só traficar armas ou drogas era insuficiente, e criaram um negócio de ativos financeiros, de compra de dívidas, por exemplo. Os chefes mais inteligentes mandaram os filhos e filhas para as universidades e escolas de negócio – e agora todos eles trabalham em longe.

Uma imagem que está longe de ser a do mafioso do chapéu.

Passei uma tarde com um fiscal italiano que trabalha para Embaixada de Itália em Londres. Ele disse-me que, há menos de um ano, um dos grandes bancos de investimento de Londres estava a considerar aceitar um membro da ‘Ndrangheta no seu quadro diretivo. E ele achava que ninguém sabia que o tipo em questão pertencia ao crime organizado, mas todos sabiam que ele tinha uma licenciatura em Harvard, outra da London School of Economics e um registo impecável nas Finanças.

E apesar desses novos caminhos os princípios ainda assentam num conceito distorcido de família?

Sim, sem dúvida. E as autoridades ainda se batem na Calábria com os homens mais velhos, ao mesmo tempo que têm que lidar um nível de investimentos massivos. Para mim, há uma notável informação que veio do magistrado Giuseppe Lombardo, que me explicou como a ‘Ndrangheta estava a chantagear países, especificamente a Tailândia e a Indonésia. Um clássico comportamento de intimidação da máfia levado a um nível… é uma coisa quase de James Bond.

Para terminarmos, e voltando às três boas mães, consegue explicar como foi difícil para elas romper a omertà, o pacto de silêncio?

Para mim, nas boas mães também deve estar incluída a procuradora Alessandra. Mulheres que tiveram a coragem de ver para lá do seu mundo fechado e foram capazes de imaginar uma vida diferente – mesmo que isso pudesse custar-lhes a vida. A Alessandra conseguiu ver que as mulheres da máfia podiam ser essenciais para destrancar esta organização, enquanto muitos dos homens do seu gabinete viam as mulheres como vítimas passivas, não como protagonistas. Hoje ouvimos falar de uma nova onda de feminismo, com movimentos como o #Metoo. São assuntos que merecem atenção mas há alturas em que são triviais – como uma atriz que acusa a outra de não a apoiar, e isso é ouvido em todo o mundo. Estamos a falar de duas pessoas privilegiadas… Quem quer saber por que se deve interessar por feminismo, e pelo poder que a associação feminina pode ter, então a história destas mulheres tem todas as instruções de que precisa.