Massacre. Dos burros em nome da China

O aumento de consumo de um produto da medicina tradicional chinesa está a ameaçar a população mundial de burros. No Quénia já há quatro matadouros. 

O mercado ilegal para peles de burro tem aumentado nos últimos anos em África. Quénia, Burkina Faso, Nigéria, entre outros países do continente, estão a braços com uma pressão que ameaça as suas populações de burros devido a um elixir milagreiro da medicina tradicional chinesa. 

O crescimento da procura do ejiao, uma gelatina feita a partir da pele de burro cozida, no mercado chinês já diminuiu para metade as burricadas chinesas e está a fazer o mesmo em África, na Austrália e América Latina, onde o preço dos animais está a crescer e a fomentar o comércio ilegal.

«A este ritmo vamos dizer aos nossos filhos que os burros existiram um dia», afirma à Voice of America, Joseph Kariuki, conhecido por Jose wa Mapunda, ou José dos Burros em suaíli. Depois de um dia lhe roubarem os seus animais, resolveu fundar a Tunza Punda Wako (Tome conta do seu burro, em suaíli).

Organização imprescindível num país onde a população de burros desceu um terço nos últimos nove anos – de 1,8 milhões para 1,2 milhões. Há três matadouros a trabalhar a todo o gás e um quarto está para ser inaugurado. Aí os burros são mortos com marretas ou degolados, antes de a pele lhes ser retirada e a carcaça abandonada, porque só a pele é usada.

As peles cruzam depois os mares até à China, principalmente até o condado de Dong’e, na província de Shandong, no leste do país, onde a maioria do ejiao é produzido (ver texto ao lado). Quase 90% das fábricas chinesas do produto estão situadas neste condado remoto, onde as ruas se enchem de lojas e mais lojas que comercializam o produto.

Para aguentar o atual ritmo de produção, as empresas de ejiao precisam de quatro milhões de peles por ano. O crescimento da procura trouxe a subida dos preços e os burros tornaram-se um bem valioso demais para as comunidades que viviam da sua utilização no dia a dia. Aquilo que antes era um meio de transporte ou uma ajuda de trabalho barata e fiável, transformou-se num produto inalcançável para bolsas africanas. O burro tornou-se uma matéria-prima internacional e com isso introduz-se um elemento disruptivo em formas de vida com séculos. Como escreveu a Economist, a pele de burro passou a ser o novo marfim.

Ao contrário dos porcos ou vacas, os burros não são propícios à criação intensiva. A burra dá à luz uma cria por ano e tem tendência a abortar quando submetida a uma situação de muito stress.

The Donkey Sanctuary, organização não governamental britânica que luta pela preservação da espécie, refere que se está a praticar agora a criação a nível industrial, sobretudo na China, contribuindo para que «as práticas atuais sejam insustentáveis e estejam a causar um sofrimento a uma escala gigantesca». E com o consumo de ejiao em tendência de subida, a pressão sobre os 44 milhões de burros tenderá a aumentar e não a diminuir. Calcula-se que a demanda poderá chegar a dez milhões de burros por ano.

Investigadores da Universidade Silvicultura de Pequim alertaram em novembro do ano passado para a possibilidade de o burro se transformar no «próximo pangolim», o mamífero mais traficado do mundo, cuja carne é considerada uma iguaria em partes da China, onde se acredita que ajuda a melhorar os rins. As escamas são usadas na medicina tradicional chinesa para tratar doenças de pele. Hoje, os pangolins chineses estão na lista internacional de espécies ameaçadas.

Luta para travar comércio ilegal

A China importa peles de burro de variados países do mundo – Quirguistão, Brasil e México, entre outros -, mas a maioria das importações vêm de África. Pobreza, falta de condições de segurança e a perspetiva de um negócio muito lucrativo estão a ter impacto em vários países.

Vários governos já baniram a exportação de peles de burro – do Botswana, Burkina Faso, Egito, Gana, Mali, Níger, Nigéria, Senegal, Tanzânia e Uganda -, sendo que quatro deles (Burkina Faso, Botswana, Tanzânia e Etiópia) mandaram encerrar matadouros de burros criados por empresas chinesas. Os executivos da Gâmbia, Malawi e Zimbabué também expressaram preocupação relativamente a este tipo de comércio, embora sem avançar com ações concretas para o travar.

No entanto, ao invés de travar a matança desenfreada de burros, as proibições empurraram o comércio para a clandestinidade. O número de matadouros ilegais cresceu desde então. Comunidades rurais são aliciadas para abaterem e esfolarem os animais.

O Quénia, por outro lado, tem outra perspetiva e fomenta o setor económico – mesmo se volta e meia há protestos contra a comercialização de peles de burro. Animais roubados na vizinha Tanzânia são transportados através da fronteira para serem mortos em Nairóbi. O comércio de peles de burro está em alta, na capital queniana o preço subiu 50 vezes entre 2014 e 2016, ao mesmo tempo que triplicava o valor de um burro vivo, que passou de 60 dólares (52,7 euros) para 165 dólares (145 euros). Os três matadouros abateram quase 100 mil burros em dois anos.

A África do Sul procura uma perspetiva diferente para lidar com o fenómeno. Nem assumindo a perspetiva única do lucro que existe no Quénia, nem banindo completamente o comércio, como fizeram outros países. Em fevereiro do ano passado, foram anunciados planos para a construção de locais de abate e cursos de formação para criadores de burros. De acordo com um comunicado de imprensa do Executivo sul-africano, os projetos visam «aliviar a pobreza, aliviar a desigualdade» e «criar empregos decentes». A exportação de peles está restringida a 7300 por ano, mas o número real é muito, muito superior. São às centenas os comerciantes que no papel colocam números baixos de exportação para enganar as autoridades. Algo que acontece noutros países africanos e não só.