Viver a vida pela metade

Para ser grande, sê inteiro / Nada teu exagera ou exclui, escreveu Ricardo Reis, exortando à plenitude. Escrita há um século, a advertência mantém a actualidade porque persiste uma doença social, com causas diversas mas o mesmo resultado: a renúncia a uma parte da vida.  Há pessoas que nascem fadadas para realizar, parecendo viver duas…

Para ser grande, sê inteiro / Nada teu exagera ou exclui, escreveu Ricardo Reis, exortando à plenitude. Escrita há um século, a advertência mantém a actualidade porque persiste uma doença social, com causas diversas mas o mesmo resultado: a renúncia a uma parte da vida. 

Há pessoas que nascem fadadas para realizar, parecendo viver duas vidas numa só, tamanha é a obra feita. Uma brincadeira de aldeia alude à lápide de uma campa: ‘Aqui jaz João Biscoito / viveu cem anos / morreu aos dezoito’. A explicação para o paradoxo estava, segundo os gentios, no facto de o tal Biscoito ter sido um homem ‘de fazer’, a ele se devendo realizações que uma pessoa normal levaria décadas a concretizar. 

Há pessoas assim – como terá sido o caso de William Pitt, o Novo, que, na conservadora Inglaterra do século XVIII, chegou a primeiro-ministro aos 24 anos. 

No extremo oposto estão os profissionais da desistência, que não atingem um único dos objectivos que apregoam: na escola não se integram, no emprego desmotivam-se cedo, no casamento nada fazem para que ‘dê certo’, e o abandono é o resultado inevitável de qualquer experiência ensaiada. 

O impagável Raul Solnado parodiava assim uma dessas criaturas: «trabalhava arduamente de segunda a terça-feira, entre as onze e o meio-dia», mas falava de um herdeiro rico, que devia o luxo do ócio à fortuna da família e à incúria dos educadores. 

Mais difíceis de compreender são os que usam a objecção sistemática como forma de vida: no menu do restaurante não encontram nada que lhes sirva, na vizinhança não há quem lhes agrade, na cidade onde vivem conhecem cinco ruas e não mais de seis lojas. 

Para lá do seu pequeno mundo, há coisas fantásticas, mas nunca as irão descobrir porque têm os horizontes – o físico e o mental – limitados pelas baias de uma miopia congénita. Condenaram-se à pobreza da pequenez, por não acreditarem que… ‘quem não sabe é como quem não vê’. Passaram pelo mundo sem suspeitarem que ele se pode revelar prodigioso quando é desbravado pela curiosidade intelectual.

Uma outra categoria é a dos abdicantes: não são preguiçosos, nem ‘especiais’, apenas nunca se aventuraram ao prazer da descoberta. Tenho amigos que já dobraram os 80 e não tiveram tempo – e já não o terão – para descobrir o maravilhoso mundo que os rodeia, da natureza à ciência, das artes à gastronomia. 

Poderá supor-se que são pessoas destituídas de imaginação e de coragem, mas não é o caso: falo de alguns dos seres mais criativos e com mais arrojo que conheci, muitos deles com realizações que excedem o que é legítimo esperar do cidadão comum. Foram excelentes na metade da vida em que se acantonaram, perderam a outra metade. 

Critica-se, e bem, a pobreza intelectual e a preguiça, da mesma forma que se louva, e bem, a grandeza dos simples e dos altruístas. Mas, onde se pode apontar o vício ou a virtude, eu só consigo ver vidas incompletas. Não crítico, mas também não encontro razões para aplaudir.