O belo ajudou à tragédia?

Se a ponte Morandi não fosse tão elegante, se fosse mais robusta, possivelmente não teria caído.

OLHANDO para a ponte de Génova antes do colapso, a estrutura parece-me frágil. Bonita, sem dúvida, mas frágil. A concepção transmite uma estranha sensação de insegurança. 

Acontece muito isso com os produtos italianos. São bonitos, elegantes, têm charme, mas não são robustos nem funcionais. Parece haver uma cedência da funcionalidade perante a estética. No calçado – os célebres sapatos italianos – isso é por demais evidente. São lindos, têm um design admirável, mas não se adaptam muitas vezes aos nossos pés – têm de ser os pés a adaptar-se a eles. E não são muito duráveis. Resumindo: beleza máxima, funcionalidade duvidosa. 

Ora, a ponte Morandi transmitia essa mesma sensação de beleza intranquila. 

CLARO que, depois do que se passou, é fácil dizer isto. Depois de a bola entrar na baliza, é fácil dizer que se adivinhava o golo. Mas antes, quem o terá dito?

Até porque todas as pontes são amplamente testadas em laboratório antes de serem construídas. São sujeitas a provas de esforço que prevêem tudo o que possa imaginar-se: cargas, impactos, ventos, tremores de terra, etc. E têm margens de segurança enormes. Por exemplo: se a carga máxima prevista for mil toneladas, a resistência da estrutura é calculada para uma carga de quatro ou cinco mil.

Sucede que, mau grado todos os testes feitos e todas as margens de segurança, a ponte caiu mesmo. E aí, fazendo apelo à minha formação de arquitecto, pus-me a analisar o que poderia estar na origem daquela sensação de fragilidade que sentia ao observá-la.

O TABULEIRO DA PONTE assentava sobre uns elegantes conjuntos de pilares altíssimos, em forma de V – e era, além disso, suportado por uns cabos provenientes de outros pilares verticais, mais altos, semelhantes aos que existem nas pontes 25 de Abril e Vasco da Gama. Quer os pilares em V, quer os outros, quer o tabuleiro eram em betão. 

Olhando para toda aquela enorme estrutura, comprida e altíssima, percebemos que ela estava sujeita a pressões laterais enormes, que a fariam oscilar para um lado e para outro por acção do vento, da trepidação do tabuleiro, das cargas não uniformemente distribuídas, etc.

Sucede que o betão não resiste a esforços de oscilação mas apenas a esforços de compressão. E era precisamente isso que me transmitia essa sensação de vulnerabilidade da estrutura. 

QUE RELAÇÃO poderá haver entre a concepção da ponte de Génova e a catástrofe que aconteceu? A pergunta parecerá ingénua, pois tudo isso estaria calculado. É verdade. Como comecei por dizer, os modelos das pontes são testados em duras provas de laboratório. Mas não é menos verdade que a ponte caiu!

A questão é esta: em condições normais, é óbvio que a ponte estava preparada para resistir a todas as situações e esforços que era chamada a suportar. Deu-se, portanto, algo de anormal, que não sabemos o que foi – a ruptura de um cabo (tirante), uma deficiência de construção -, que provocou um desequilíbrio e esteve na origem da tragédia. Mas tenho para mim que, se a ponte fosse mais robusta, se não fosse tão elegante, tão esbelta, provavelmente teria resistido melhor a esse facto anormal. 

PERGUNTAR-SE-Á agora se o mesmo não poderá acontecer, por exemplo, às nossas pontes sobre o Tejo (as que conheço melhor). Não pode. Os tabuleiros de acesso são em betão, mas assentam sobre pilares robustíssimos, que até parecem exageradamente fortes. E, na ponte 25 de Abril, toda a estrutura principal, desde os pilares ao tabuleiro, é metálica – e o metal, isso sim, resiste às oscilações nos vários sentidos. Ao contrário dos pilares de betão, que só resistem à compressão, os pilares metálicos resistem perfeitamente à tracção, ao ‘encurvamento’. 

Quanto à ponte Vasco da Gama, que é toda em betão, a parte mais elevada do tabuleiro é relativamente curta, não tem nada que ver com a enorme altura e comprimento da ponte Morandi, pelo que está muito menos exposta a ‘oscilações’ laterais.

SEJA O QUE FOR que aconteceu na ponte de Génova, a sua concepção não ajudou. Se o desenho fosse outro, se não tivesse aquela leveza que lhe dava um ar tão elegante, possivelmente não teria caído. Neste caso, o belo pode ter sido fatal. Um excelente exemplo de engenharia acabou por transformar-se numa tremenda ratoeira para dezenas de pessoas, cobrindo a Itália de luto.