John McCain. Entre heroísmo e belicismo

O senador republicano John McCain faleceu no sábado passado, vítima de um tumor no cérebro. Elogiado como herói e patriota por uns, criticado por ser um ‘falcão belicista’ por outros, a sua vida é indissociável da política norte-americana nas últimas décadas.

John McCain. Entre heroísmo e belicismo

Rebelde, herói e patriota, para uns; falcão militarista e cúmplice pela morte de milhares de inocentes pelo mundo fora, para outros. A vida do senador republicano John Sidney McCain III é indissociável da política norte-americana das últimas décadas. A poucos dias de celebrar o seu 82.º aniversário, McCain não resistiu, no sábado passado, a um tumor no cérebro. A sua morte foi anunciada pela sua família em comunicado: «O senador John Sidney McCain III morreu às 4h28 minutos de 25 de agosto de 2018. Aquando da sua morte, o senador estava com a sua mulher Cindy e família. Serviu lealmente os EUA durante 60 anos até à sua morte». Na sexta-feira, a família tinha revelado que o histórico senador e uma das figuras mais queridas do establishment norte-americano tinha interrompido o tratamento à doença e voltado ao seu rancho, entendido como prenúncio para o seu falecimento. As reações nos EUA e um pouco por todo o mundo multiplicaram-se que nem uma avalanche. Entre as primeiras e mais pessoais, conta-se a da sua mulher, Cindy, que, através do Twitter, não escondeu a emoção: «O meu coração está partido. Fui tão felizarda por ter vivido a aventura de amar este homem incrível durante 38 anos. Faleceu da forma que viveu, nos seus próprios termos, rodeado pelas pessoas que amava no local que mais amava [o seu rancho no Arizona]». 

E, num raro momento de consenso bipartidário, tanto republicanos como democratas prestaram homenagem ao seis vezes eleito senador pelo Arizona. «Víamos as nossas batalhas políticas como um privilégio, como algo nobre, uma oportunidade para servir como representantes dos elevados ideais em casa e para os avançar no resto do mundo», reagiu, em comunicado, o ex-presidente democrata Barack Obama, sobre o seu adversário nas presidenciais de 2008. Para o antigo presidente republicano George W. Bush filho, McCain «foi um homem de grandes convicções» e um «servidor público na melhor tradição do nosso país». «Numa era cheia de cinismo sobre a unidade nacional e o serviço público, a vida de John McCain é um raio de luz e um exemplo. Mostrou que o patriotismo sem limites e o autossacrifício não são conceitos ou clichés que pertencem ao passado, mas os pilares de uma vida extraordinária», elogiou o líder da maioria republicana no Senado, Mitch McConnell. Também o antigo senador pelo Nevada, Harry Reid, caracterizou McCain como «herói de guerra, forte, lutador independente e amigo», acrescentando que «o país hoje [sábado passado] perdeu um líder icónico e sentirei terrivelmente a sua falta».

Reações que não se ficaram por políticos norte-americanos, estendendo-se também aos líderes de outras nações. «John McCain foi um grande estadista que incorporou a ideia de serviço para além de si», disse a primeira-ministra britânica, Theresa May. Também o presidente francês, Emmanuel Macron, teceu enormes elogios ao senador: «Era um verdadeiro herói norte-americano. Devotou a sua vida inteira ao seu país. A sua voz fará falta». E, numa nota que representativa das convicções do republicano sobre a NATO, o secretário-geral da organização, Jens Stoltenberg, afirmou que o McCain era um «soldado e um senador, um norte-americano e um atlanticista. Será lembrado tanto na Europa como na América do Norte pela sua coragem e caráter, bem como por ter sido um forte apoiante da NATO». 

Reações nacionais e mundiais que contrastam com a do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Num breve tweet, limitou-se a enviar «as mais sentidas simpatias e respeito» à família do senador republicano. «Os nossos corações e preces estão convosco!», afirmou, sem, no entanto, ter referido o percurso de McCain nem os contributos que deu ao longo da sua vida para a política norte-americana. Depois, limitou-se a ir jogar golfe e a ordenar que a bandeira dos Estados Unidos na Casa Branca fosse colocada a meia haste, para, no final de domingo, estar de volta à sua normal posição. Sob fortes críticas, Trump voltou a ordenar a descida da bandeira para meia haste na segunda-feira. Segundo o Washington Post, o gabinete do presidente já estava precavido para a morte do senador, tendo redigido uma declaração a lamentar o seu falecimento. Ao ler a palavra «herói» no documento, Trump voltou atrás e recusou publicar a declaração, afirmando preferir escrever uma breve mensagem na rede social, num ato de coerência que lhe é desconhecido mas que não o protegeu de críticas. Durante a campanha presidencial, o então candidato Donald Trump disse que McCain «não era herói de guerra» por ter sido «capturado». «Gosto de pessoas que não são capturadas», acrescentou Trump na altura. 

Em resposta, McCain afirmou-se como um dos principais críticos do chefe de Estado no Partido Republicano, em mais um ato de independência política que manteve ao longo da sua carreira. Atacou Trump pelo seu populismo e condução da política externa norte-americana, nomeadamente por querer encolher a presença militar dos EUA no mundo, e as relações com a Rússia. «Nenhum presidente do passado se rebaixou de forma tão abjeta perante um tirano», afirmou o senador republicano sobre o encontro entre Trump e o presidente russo, Vladimir Putin, em Helsínquia. Recentemente, virou-se contra o Presidente e os republicanos ao votar contra a revogação da lei do Obamacare – o programa de saúde federal que permite a milhões de norte-americanos acederem a cuidados de saúde, ainda que o seu orçamento tenha sido fortemente reduzido pelos republicanos. Desde sempre crítico do Obamacare, interrompeu o tratamento ao cancro e voou dois mil quilómetros para se opor à revogação, argumentando que não estava a seguir os trâmites normais do órgão legislativo. Em retaliação, Trump não fez nenhuma alusão ao senador quando a lei, que aumenta o orçamento do Pentágono em 11,5% (82 mil milhões de dólares) e que tinha o seu nome, foi aprovada pelo Senado. 

Ao abandonar o Senado em dezembro, McCain, sabendo que não conseguiria escapar à doença, informou os seus mais próximos de que não gostaria de ter Trump no seu funeral, ao contrário de Barack Obama ou de George W. Bush, que farão elogios fúnebres, no a cerimónia. E assim será este sábado, em Washington.

 

A vida de McCain entre o heroísmo e o intervencionismo dos EUA

McCain nasceu numa família com uma longa história de serviço militar a 29 de agosto de 1936. Neto e filho de almirantes que comandaram as forças norte-americanas na II Guerra Mundial, na invasão da República Dominicana para depor um governo democraticamente eleito em 1965 e na Guerra do Vietname, McCain, então com 18 anos, entrou para a Academia Naval em 1954. Na instituição, foi repreendido quatro vezes por atos de rebeldia, ficando à beira da expulsão, mas lá se endireitou e tornou-se piloto de combate. Começou a pilotar aviões em 1967, participando em várias operações aéreas de bombardeamento do Vietname do Norte até ser abatido no espaço aéreo da capital dos Vietcongues, Hanói. Capturado, passou cinco anos num campo de prisioneiros de guerra. Foi espancado, torturado e passou fome durante cinco anos no famoso «Hilton de Hanói», onde, em 1969, atingiu o limite e foi forçado a gravar uma confissão a repudiar a intervenção militar no país e de ter cometido crimes contra o povo vietnamita. «Aprendi que todos aprendemos lá: todo o homem tem o seu ponto de rutura. Atingi o meu», admitiu McCain num relatório em primeira pessoa publicado no US News & World Report, em 1973.

Recordando os tempos em que foi o responsável máximo pelo campo de prisioneiros, o coronel Tran Trong Duyet, não deixou de elogiar, no passado fim de semana, a «tenacidade e a forte postura» do militar capturado. «O que eu adorava ao discutir com ele era a sua obstinação e forte postura», admitiu o oficial vietnamita. E, para grande espanto, afirmou ainda que McCain não foi torturado durante o cativeiro de cinco anos: «Não houve qualquer tortura, o povo vietnamita salvou-o». O então piloto de caça não era um soldado como outro qualquer: era filho do comandante da operação militar norte-americana no Pacífico em 1968, o que levou McCain a ser chamado de «príncipe herdeiro» pelos seus captores. Era, acima de tudo, um trunfo simbólico na guerra de propaganda entre Washington e Hanói. Com a Conferência de Paris de 1973, veio a paz oficial com os EUA e, em 1975, a unificação do Vietname, com o militar a ser libertado. Décadas depois, McCain continuava sem perdoar os vietnamitas pelo que lhe fizeram, dizendo, numa ação durante a campanha para a nomeação republicana de 2000, que os iria odiar «enquanto for vivo».

Regressado aos EUA, o militar manteve-se no serviço ativo até 1981, quando decidiu candidatar-se à Câmara dos Representantes pelo estado do Arizona. Ganhou e por lá se manteve, criando ligações políticas para no futuro próximo dar um novo salto em frente na sua carreira política. E assim foi. Em 1986, o congressista, então com 50 anos, avançou e conquistou um lugar no Senado pelo mesmo estado. Seria eleito seis vezes até falecer, destacando-se como uma das figuras mais mediáticas dos republicanos. Pelo meio, candidatou-se por duas vezes à presidência dos EUA, em 2000 e 2008. Na primeira, perdeu a nomeação republicana para o candidato George W. Bush filho, que veio a ser presidente dos EUA por dois mandatos, entre 2000 e 2008. E, na segunda, a presidência escapou-lhe para o democrata Barack Obama (2008-2016). Os seus críticos acusaram-no de ter aberto as portas ao populismo ao escolher para candidata à vice-presidência a então governadora do Alasca, Sarah Palin, conhecida por ter um discurso semelhante ao de Trump. 

O sonho da sua vida – a presidência – foi-lhe vedado e o próprio veio a admiti-lo nas suas memórias: «Na verdade, queria tornar-me presidente por ter sido desde sempre a minha ambição». Uma ambição que o levou desde o início a jogar estratégica e taticamente no cenário político norte-americano. Cultivou uma imagem, alicerçada em momentos e ações políticas, de rebeldia para com os republicanos, ora votando contra ora a favor das suas propostas. «Ansiava por distinção na minha vida», admitiu. Uma distinção que não o impedia de se afirmar como «republicano da era Reagan», apoiando intervenções militares e redução de impostos, ao mesmo tempo que se opunha ao aborto, exceto em casos de risco para a vida da mãe ou violação. 

Foi um dos grandes apoiantes da estratégia do presidente Reagan de apoiar os Contras, na década de 80, para depor o governo democraticamente eleito da Nicarágua, chegando até a considerar a redução do apoio financeiro como «o ponto mais baixo da história dos EUA». Também foi uma das vozes mais entusiastas da invasão do Afeganistão, em 2001, e do Iraque, em 2003, não esquecendo a intervenção da NATO na Líbia, em 2011. Confesso sionista, McCain chegou até a defender os bombardeamentos israelitas à Faixa de Gaza, que causaram, em 2014 e 2015, centenas de vítimas civis. Na sua visão do Médio Oriente, Washington «não deveria considerar» apoiar a formação de um Estado palestiniano e caso a ONU o viesse a reconhecer, então o Congresso «teria de examinar o financiamento da ONU», além de defender que a administração Obama nunca deveria ter assinado o acordo nuclear com o Irão. Para McCain, os EUA deveriam forçar a mudança do regime iraniano, à semelhança do que se fez no Iraque. Com a sua morte, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, não se poupou a elogios ao senador, afirmando que «o seu apoio a Israel nunca fraquejou» e que sentia «profundo pesar pela morte de um grande patriota americano e amigo».

Ainda que conhecido por ser um ‘falcão belicista’, nem sempre o senador apoiou as intervenções militares norte-americanas no mundo. Usando a sua experiência militar como argumento, opôs-se ao envio de forças para o Líbano, em 1983, criticando os gastos excessivos na Defesa, e apelou a Reagan para avançar com acordos de controlo de armamento com a União Soviética. 

Na política interna, o senador também enveredou pela rebeldia que se tornou na sua imagem de marca. Desviando-se da ortodoxia republicana, apoiou projetos lei de ambientalistas (ainda que considerados insuficientes) e sanções ao regime de apartheid da África do Sul – e chegou até a ir contra as grandes indústrias do tabaco e do etanol ao defender a retirada de subsídios federais. Em mais um momento de rebeldia póstuma, o assessor de McCain, Rick Davis, divulgou uma declaração do senador a criticar a presidência de Trump: «Enfraquecemos a nossa grandeza quando confundimos o nosso patriotismo com rivalidades tribais que mostram ressentimento, ódio e violência em todos os cantos do mundo. Enfraquecemo-la quando nos nos escondemos por detrás de muros em vez de os destruirmos».